Estilista? É pouco. Designer? Também. “Acredito que o meu papel é o de provocador cultural”, afirma hoje Ronaldo Fraga, de 56 anos. Ele se vê também como turista aprendiz, conceito que tirou de seu mentor, Mário de Andrade, para nomear uma de suas coleções. Mas, sim, mesmo fazendo um monte de coisas – de projetos de geração de emprego e renda a viagens com pequenos grupos para rincões do Brasil –, ele continua fazendo roupa. E moda, só que não só para vestir.
Sua trajetória está, em primeira pessoa, no livro “Memórias de um estilista coração de galinha” (Autêntica), título da coleção que o lançou, “Eu amo coração de galinha” (1996). O lançamento, a partir das 11h deste sábado (2/12), na loja Ronaldo Fraga para Todos, no Mercado Novo, será com dois autógrafos. Dele e da jornalista Sabrina Abreu.
Foi ela que o procurou, quase uma década atrás. Levou embaixo do braço o livro “Conversas com Woody Allen” (2008), trazendo entrevistas que o escritor norte-americano Eric Lax fez durante quase quatro décadas com o diretor. As conversas giravam em torno de seu processo cinematográfico.
“Não sou jornalista de moda, então minha intenção nunca foi falar sobre moda, além do mais porque as coleções dele vão além. Como os capítulos do livro em que me inspirei são por meio dos filmes, fiz a separação por coleções, que achei um jeito melhor para organizar”, afirma Sabrina. O livro é no formato pergunta e resposta – consegue, ao mesmo tempo, manter a ginga da uma conversa informal e o acuro de um texto de mais fôlego.
Os capítulos são cronológicos, da já citada primeira coleção até “Zuzu vive!” (2020). Naquele ano inicial da pandemia, a São Paulo Fashion Week foi virtual. Ronaldo fez um filme em que releu uma coleção de 20 anos antes, “Quem matou Zuzu Angel?”. Desde então, vale dizer, ele se recolheu dos desfiles presenciais – as duas coleções mais recentes, “Terra de gigantes” e “Entre tramas e beijos” (ambas de 2021), foram lançadas virtualmente.
Longe das passarelas
Não dá para dizer nunca mais. Entretanto, por ora, Ronaldo ficará fora das passarelas. Este, inclusive, é um tema que ele trata no livro. Desde o início da carreira, se vê como outsider. “Passou o tempo daquela loucura do grande desfile. Fazer hoje um desfile para sala de 200, 300 pessoas, você acaba fazendo para a internet, para o Instagram.”
Olhando em perspectiva a trajetória de quase 30 anos, fica claro que Ronaldo fez tudo antes. “Eu contestava o sistema estando dentro dele. Em 2017, falei que a moda tinha acabado, e isso gerou revolta dos meus pares. ‘Acabou pra ele, deve ter quebrado’. O que acabou não foi a moda em si, mas o caminho dela. A moda tem um papel importantíssimo em todos os vetores. Ela é um reflexo do tempo no retrovisor do tempo. Eu falava que a moda estava querendo se libertar da roupa e hoje vejo que ela virou um grande museu das grandes novidades.”
Sabrina conta que ficou combinado desde o início que eles não se poupariam de nenhuma questão. “Ronaldo falou até demais, tem a língua solta. Mas não teve censura mesmo”, ela diz.
Sobre a coleção “Futebol” (2013-2014), em que modelos desfilaram com peruca de palha de aço, o que rendeu a Ronaldo até um processo no Superior Tribunal de Justiça (STJ) por queixa de racismo (foi absolvido), ele diz no livro: “Eu queria o inverso, falar de como o futebol foi uma vitória dos mestiços do Brasil sobre a elite, o que não aconteceu na Copa, quando nos estádios tinha quase apenas brancos.”
Sereia furiosa
Houve também mal-estar com Maria Bethânia, que teria se recusado a usar as roupas que ele havia feito para a turnê dela. Ronaldo, que havia criado uma coleção inspirada na carreira da cantora, teve que mudar tudo. Saiu-se com a coleção “A fúria da sereia” (2015), que, obviamente, não fazia menção à baiana. No livro, ele fala: “Ela é a sereia mesmo, as águas do Brasil são dela. Mas tem aquela coisa mesmo de poder abandonar você no fundo do mar, ela é sereia. Não caia no encanto dela, não. Eu caí.”
Hoje, Ronaldo diz: “Foi um processo total terapêutico. Na maioria das vezes, rimos muito, mas choramos também. Sempre fui para os encontros (com Sabrina Abreu) completamente desarmado. Foi uma relação de confiança, falamos não só do que teve êxito, mas também do que deu errado, das tragédias particulares. O que me convenceu (a topar o livro) é que no Brasil ainda temos pouca publicação (do gênero). Ou é teórico, ou imagético demais. Entrar no processo criativo de um designer falando de coisas diversas é mostrar que a criação de moda pode ser mais”, conclui.
O primeiro desenho
"O primeiro registro que tenho é de quando estava no primeiro ano, em 1974, aquela velha coisa de você ir a um teatro, voltar para casa e ter que ilustrar o que viu", conta Ronaldo Fraga. "Foi apresentado um
slide do Patinho Feio, e eu ilustrei esse pato vestido. Pato de gravata, terno, cartola e em pé. Talvez influenciado pelo Walt Disney, claro. Aquilo causou um impacto muito grande na professora. Ela perguntou: ‘De onde você tirou que o pato estava vestido?’. Falei: ‘Ele colocou uma roupa nova e se transformou em cisne'”, relembra o estilista e designer.
“MEMÓRIAS DE UM ESTILISTA CORAÇÃO DE GALINHA”
De Ronaldo Fraga e Sabrina Abreu
Autêntica
448 páginas
R$ 119,80 (livro) e R$ 83,90 (e-book)
Lançamento neste sábado (2/12), das 11h às 15h,
na loja Ronaldo Fraga para Todos, no
Mercado Novo (Rua Rio Grande do Sul, 499, Centro)