Antes mesmo de Javier Milei ser eleito o novo presidente argentino e prometer acabar com o Ministério da Educação, os diretores María Alché e Benjamín Naishtat já previam o colapso das universidades públicas do país. Em ‘Puan’, que chega aos cinemas brasileiros hoje (7/12), o espectador vê a dura realidade dos professores de uma das maiores instituições de ensino do país.

O filme, que tem coprodução brasileira, começou a ser produzido há três anos. Nele, Marcelo (Marcelo Subiotto) é professor de filosofia na Universidade de Buenos Aires, apelidada de Puan, em referência ao bairro em que o campus fica. Ele viveu toda sua carreira acadêmica acompanhando seu mentor, Eduardo, que é professor titular na cátedra da instituição. Quando seu mestre morre subitamente, o protagonista pensa que vai assumir o cargo.

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Mas ele não é o único a ficar de olho na vaga: Rafael (Leonardo Sbaraglia) é um ex-aluno de Eduardo e colega de classe de Marcelo que fez sua carreira na Europa e nos Estados Unidos. Além de ter mais dinheiro e reconhecimento que o discípulo do titular, o antagonista também chama atenção por namorar uma das atrizes mais famosas do país.

A chegada de Rafael irrita Marcelo, que passa a questionar se o cargo com o que sempre sonhou está em risco e precisa se reinventar. Mas, enquanto isso, ele precisa fazer “bicos” para pagar as contas, apoiar sua esposa, que é uma militante feminista, e ser um pai presente.

‘Puan’ mostra, como plano de fundo, uma Argentina em crise. O Banco Central foge com os dólares do país, os estudantes estão sem bolsa e há conflitos nas ruas. Tudo isso retratado de forma cômica – uma novidade para o diretor Benjamín Naishtat, que já se aventurou no drama, no suspense e no documentário.

“A comédia é um gênero muito difícil. Foi natural querer explorar a comédia, também por um desejo natural de querer não fazer uma repetição do mesmo que já havia feito. Mas também porque sinto que é um momento do país e do mundo precisava que uma abordagem luminosa, de um filme luminoso para a gente poder rir, sabe? Isso que acontece com o espectador: ri e se emociona. É suave, não é um filme triste e obscuro. É para se desfrutar”, detalhou Naishtat ao Estado de Minas.

‘Puan’ é um dos filmes selecionados para a 38ª edição do Prêmio Goya Ibero-americano. Além disso, levou dois importantes prêmios no Festival San Sebastian: Melhor Roteiro para a dupla de diretores María Alché & Benjamín Naishtat e Melhor Ator para Marcelo Subiotto.

Muito argentino e muito latino

A realidade da universidade de Puan não é muito diferente das instituições públicas brasileiras: pouca estrutura, mentes brilhantes, salários baixos e profissionais tendo que se virar para pagar as contas. É por isso que, ao assistir ao filme, é possível imaginar que ele poderia se passar em terras brasileiras. Mesmo que haja uma atmosfera muito argentina – e muito portenha – na trama.

“O que está acontecendo no filme tem a ver com um contexto mais amplo que é esse panorama latino-americano da educação pública. De um professor cujo salário não é suficiente para sobreviver. Então, além de ser um importante professor de uma universidade, ele tem que realizar outros trabalhos. Esse panorama me parece ter um ponto de contato com uma realidade que é bastante latino-americana e também com a forma como os personagens a abordam, me parece que existe um ponto de contato com outros lugares”, defendeu o ator Marcelo Subiotto.

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"E acredito também que também é um sentimento universal – entendo que é muito Buenos Aires, que é muito latino-americano, mas que também tem o aspecto universal – a partir do momento que sempre tem gente que, sendo intelectual, fica como se estivesse fora do mainstream da sociedade. Ou seja, visto pelo resto da sociedade como uma pessoa muito distante da vida cotidiana. Eles pensam que o intelectual não tem vida cotidiana, que ele não tem vida, que ele não tem momentos como todo mundo, de comer, de ter família, de ir ao banheiro, de tudo o que acontece com todos nós. Veem o filósofo ou o professor de filosofia é visto como um ser completamente afastado das coisas cotidianas”, complementa a atriz Andrea Frigerio, que dá vida à apresentadora de TV Silvia.

O desafio, então, foi tentar encontrar um meio termo, que mostrasse o professor Marcelo que é brilhante com os alunos, mas que tem inúmeras dificuldades na vida pessoal. “Ele é um intelectual incrível quando se trata de dar aulas e uma vez que fecha a porta, é uma pessoa um tanto cinzenta e com dificuldades de comunicação, com dificuldades sociais, o que lhe dá muitos pontos de comédia. O desafio era encontrar esses dois mundos e poder unificá-los, poder ver aquela pessoa nesses dois aspectos e não deixar de ver nenhum dos dois lados”, destacou o protagonista.

Já para Mara Bestelli, os obstáculos são outros. Ela dá vida à Vicky, esposa de Marcelo e militante feminista. Acontece que o casal da ficção também são marido e mulher na vida real. Mas o mais difícil foi imprimir em cena uma família que não parece estar bem, mas que se une pelo amor.

“No meu caso, foi como fazer essa família funcionar. Mesmo parecendo que é uma família disfuncional, ela funciona perfeitamente porque eles se apoiam uns nos outros. Tem muito amor naquela família. A gente teve que construir aquele dia-a-dia. Temos um vínculo na vida real que funcionou a nosso favor e já sabíamos disso, mas acrescentemos aquela criança linda”, refletiu a atriz.

Milei antes de Milei

‘Puan’ foi escrito há três anos, quando Javier Milei sequer era um nome forte na disputa à presidência. Mesmo assim, parece que ele já sabia que viria o que Naishtat chama de “uma aventura à extrema-direita”. “Alguma coisa já estava no ar, porque quando o filme saiu em Buenos Aires, há dois meses, ele virou imediatamente uma ferramenta de debate no contexto atual. Então, certamente já havia algo das tensões de agora no roteiro lá atrás”, opinou o diretor.



Subiotto destacou que o lançamento na Argentina aconteceu em meio à campanha eleitoral e lembrou que Milei falou abertamente no desmonte da educação. “O filme coloca uma lente sobre essa questão e mostra particularmente esse problema numa cena. Dali se gerou algo que fez com que o público se questionasse. Em todo caso, gostaria de dizer que não é o ponto principal do filme. É uma lente sobre um problema que os diretores, tanto Benjamin quanto María, souberam mostrar muito bem, a tal ponto que não é um olhar pedagógico para aquele conflito, de dar uma solução ou a resposta política, mas simplesmente para que o espectador se sinta desafiado por estas possibilidades e procure respostas e perguntas”, disse.

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