Grace Passô é movida pela curiosidade. Ela despontou na cena artística como atriz, dramaturga e diretora de teatro e rapidamente abraçou também o audiovisual, atuando em filmes e séries. Agora, em um ano repleto de realizações profissionais, estreia como diretora de cinema em longa-metragem, com o filme intitulado "Amores 1500", que acaba de ser rodado.




Grace explica que o longa é uma reescritura da peça "Amores surdos", primeira dramaturgia que assinou, em 2004, para o grupo Espanca!, do qual fazia parte. A história do filme foca o cotidiano de uma família negra que, para suportar o luto recente do pai, recusa-se a falar sobre sua ausência. À medida que o silêncio aumenta, estranhas manchas de lama surgem pela casa.

Transpor peças para a linguagem audiovisual é algo que Grace já vem experimentando, por exemplo, com "Vaga carne", o espetáculo que encenou mais recentemente e que foi transformado numa "espécie de filme", conforme diz. "No caso do 'Amores 1500' é diferente, mas também é um exercício de mergulho naquela peça que escrevi em 2004. A montagem foi uma parceria do Espanca! com a Rita Clemente, que dirigiu", diz.

Ela observa que o filme parte da situação apresentada na peça, mas segue por outros caminhos. "É um movimento que tenho feito e que tem me interessado, isso de reescrever trabalhos de teatro que fiz no passado e, a partir dessa reescrita, repensar mesmo uma série de coisas", destaca.

O título – que é provisório – se refere à chegada dos colonizadores e dos primeiros escravizados no Brasil, conforme aponta. "É a história de uma família negra, que mora em Belo Horizonte, e cujos membros, de certa forma, representam gerações de negros no Brasil, a partir do sequestro, da invasão, até os tempos atuais", diz.

Tia Anamélia, idosa, é a matriarca que representa a matriz negra da formação do povo brasileiro. A mãe Suely, de meia idade, é da geração que atravessou a possibilidade de inserção em profissões menos subservientes. Gilson, o filho mais velho, expressa a geração de uma masculinidade perdida entre novas e velhas noções de patriarcado.

Guto é o filho jovem, perseguido pelas estatísticas de genocídio da juventude negra do país, e Graziele, a adolescente na aurora da expansão das militâncias negras. E, por fim, Tutu, que vive uma infância atravessada por todas essas questões ao mesmo tempo em que representa um prospecto futuro.

HISTÓRIA DE AFETOS

"Apesar de ser a história de uma família deste tempo, cada membro é de uma geração, com conflitos e subjetividades ligados à história da negritude no Brasil", sublinha Grace. "E como estamos falando de uma família, é sobretudo uma história de afetos, que se configuram em uma base sólida que dá suporte e estrutura para estar e sobreviver na sociedade brasileira de hoje", completa.

Recapitulando, ela diz que começou a fazer trabalhos como atriz para cinema em 2016, a partir da aproximação com artistas como Ricardo Alves Jr. e os diretores da produtora Filmes de Plástico. "Isso foi me atravessando e aconteceu o mesmo que tinha acontecido com o teatro: a partir do trabalho como atriz, me deu vontade de experimentar outras funções dentro daquela linguagem", ressalta.

Ela se recorda que em 2020, em plena pandemia, fez com Wilssa Esser, a convite do Instituto Moreira Salles, o curta "República". Grace conta que, para sua surpresa, o filme circulou muito em festivais on-line. "Consegui criar um projeto que teve uma recepção interessante, que gerou mais convites para conversar sobre cinema", diz, destacando a parceria com Ricardo Alves Jr., que assina a produção de "Amores 1500".

Sem que fosse algo planejado, o elenco do longa em que está trabalhando reúne nomes do universo musical, como Mateus Aleluia, Jéssica Gaspar, Flip e Robert Frank. A eles se juntam outros, como Nanego Lira e Ju Colombo. As filmagens acabaram de ser concluídas e resta, para o próximo ano, o processo de montagem.

A feitura de "Amores 1500" coroa um ano pródigo para Grace. Ela escreveu, para a Globo, junto com Renata Martins e Jaqueline Souza, o projeto "Histórias impossíveis", com cinco episódios exibidos ao longo do ano - em um deles, "Levante", ela compareceu também como atriz. É autora, ainda, juntamente com Mariana Jaspe e Paulo Lins, da série "Resistência negra", uma produção Globoplay que estreou em novembro passado.

Grace também estrelou o filme "O dia que te conheci", de André Novais Oliveira, da Filmes de Plástico, pelo qual ganhou, no Festival do Rio, o prêmio de melhor atriz, juntamente com Maeve Jinkings. O longa integra a mostra competitiva do Festival de Brasília, onde será exibido nesta quarta-feira (13/12). E para o próximo ano, ela estará em cena em outra produção Globoplay - a série "Reencarne" - ao lado de Taís Araújo e Enrique Diaz. n

JOGANDO NAS ONZE

Grace diz que a atriz, a dramaturga, a roteirista, a diretora de teatro e, agora, a cineasta convivem em harmonia. Ela afirma que, independentemente da função que vá exercer, é movida por projetos interessantes - seja porque são escancaradamente políticos ou porque representam uma nova experiência. "Aconteceu naturalmente ao longo da minha vida, isso de, a partir do olhar da atuação, buscar me desenvolver tecnicamente no lugar da direção. É uma forma de eu chegar perto da concepção do projeto e de poder escolher mais profundamente onde quero me encaixar, onde quero estar", afirma.

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