O ano era 1973, fim do governo do general Emílio Garrastazu Médici. A resistência à ditadura havia aumentado e a tortura passou a ser usada como método “legítimo” para eliminar e neutralizar qualquer forma de oposição ao governo. Nessa época, registraram-se os maiores índices de violações aos direitos humanos no país. Qualquer ato entendido como transgressão à moral e aos bons costumes poderia levar o cidadão para a prisão – muito possivelmente, ao pau-de-arara.

 

Em meio a tudo isso, uma cena insólita ocorria com frequência no prédio onde funcionava o departamento de censura em São Paulo: Ney Matogrosso, Gerson Conrad e João Ricardo, extremamente desconfortáveis, com rostos pintados, roupas extravagantes e peitos nus, apresentavam-se para uns poucos militares, encarregados de avaliar se aquela performance poderia entrar em cartaz na cidade.

 

A cena, por si só, é bizarra. Fica mais bizarra ainda porque os militares aproveitavam os “shows particulares” do Secos e Molhados para levar mães, avós, filhos e esposas para ver Ney Matogrosso cantar.

 

“Naquela época, a banda estava em tudo quanto é rádio e programa de TV. Eles eram amados pelas crianças e, principalmente, pelas mulheres. Era como se aquela dança, o gestual e a presença de palco, sobretudo do Ney, despertassem uma espécie de libido”, lembra o jornalista e escritor Miguel de Almeida.

 

Com a ousadia de sua arte, Gerson Conrad, Ney Matogrosso e João Ricardo driblaram a censura e a opressão

Fernando Seixas/O Cruzeiro/EM/D.A Press


Revolução cultural

 

É dele o livro “Primavera nos dentes – A história dos Secos & Molhados”, lançado em 2019, que recentemente ganhou nova edição pela Record. Mais que biógrafo, revelando curiosidades e casos inusitados, o autor mostra como se dava a vida cultural no contexto político marcado por intensa repressão, tendo a banda como pano de fundo.

 

“Sempre achei que o Secos e Molhados seria um excelente instrumento para isso”, diz o jornalista. “Queria entender aquela reação cultural potente que, na verdade, vinha ocorrendo desde meados dos anos 1960, sob a ditadura militar muito severa. Queria contar como os artistas enfrentaram o momento de falta de liberdade, de censura e de perseguição política com suas criações e, ao mesmo tempo, mostrar que havia forte renovação cultural com reflexos no comportamento, coisa que jamais tinha ocorrido no Brasil até então”, emenda.

 



 

Mesmo com vida breve – Secos e Molhados durou de 1973 a 1974 –, a banda deixou legado que ecoa até hoje. Se as músicas marcaram uma geração, o grupo teve importante papel político, peitando a ditadura com sagacidade e jogando sua luz libertária sobre questões de gênero. “Mas os milicos não perceberam isso”, observa Miguel de Almeida.

 

Aquele enfrentamento ao regime era muito inteligente, aponta o jornalista. “A começar pelas músicas. Para driblar a censura, eles musicaram poemas de Vinicius de Moraes, Oswald de Andrade e Solano Trindade, publicados antes do golpe de 1964. Então, não tinha como os militares garantirem que as canções eram críticas ao regime.”

 

 

Desde o início, a banda tinha tudo para dar errado. As primeiras rusgas surgiram já no álbum de estreia, quando o baterista Marcelo Frias não quis pintar o rosto. Ele é o único sem maquiagem na icônica capa que traz as cabeças dos músicos servidas em bandejas numa espécie de banquete antropofágico. Frias participou do segundo disco apenas como músico contratado.

 

O conflito que levou ao fim envolveu dinheiro. Ney Matogrosso ganhava menos por ser intérprete. A maior fatia ficava com João Ricardo, pelos direitos autorais, e seu pai, João Apolinário, empresário da banda.

 

Ney só recebia pela participação nos shows, ao contrário do acordo inicial de dividir os ganhos entre ele, João, Conrad e Moracy do Val, espécie de agente da banda demitido por João.

 

“E olha que eles venderam muito”, ressalta Miguel. “Naquela época, venderam 1 milhão de cópias. É como se cada família brasileira tivesse um disco deles.”

 

O Secos e Molhados, diz Miguel, foi a “mosca na sopa” dos militares. Quando os generais se deram conta da proposta da banda, a popularidade conquistada pelo trio era enorme – e os três já haviam se separado.

 

Miguel às segundas no EM

 

Nesta segunda-feira (18/12), Miguel de Almeida estreia como colunista do Estado de Minas. Em artigos publicados quinzenalmente na editoria de Política, o jornalista e escritor abordará fatos da política sob o viés cultural.

 

“Geralmente, para os textos que publico em colunas, procuro misturar essa coisa da política com a cultura. Acho que a cultura traz uma implicação sobre o homem, sobre o comportamento do homem e sobre a liberdade do homem. Isso daí é política”, afirma.

 

“PRIMAVERA NOS DENTES – A HISTÓRIA DOS SECOS & MOLHADOS”


• De Miguel de Almeida
• Editora Record
• 376 páginas
• R$ 79,90

compartilhe