Parece coisa de filme, mas, de fato, aconteceu. Na segunda metade do século 16, o rei de Portugal, Dom Sebastião, tombou na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, teve seus restos mortais reconhecidos por nobres e foi reconduzido de volta para o território luso, onde recebeu funeral digno de Sua Majestade, conforme mandava o ritual.

Cerca de 20 anos depois, apareceu na Itália um homem alegando ser Dom Sebastião. O homem, contudo, não era loiro, diferentemente do monarca, era mais baixo do que Dom Sebastião e, ainda mais estranho, não sabia falar português.

Se Portugal não vivesse nessa época uma crise de sucessão, esse homem seria prontamente condenado à morte. Mas uma enorme teia envolvendo intrigas políticas, delicadas relações internacionais entre os reinos da Europa e a crença messiânica da população na volta do rei deu corda ao boato que surgiu na Itália, de modo que o calabrês Marco Tullio Catizone, que alegava ser Dom Sebastião, iniciou um périplo por vários países, convencendo muita gente de que era o titular da coroa portuguesa.



Por séculos, essa crença, chamada de sebastianista, vigorou em Portugal e até chegou ao Brasil - documentos encontrados em Canudos indicam que Antônio Conselheiro acreditava na volta de Dom Sebastião, mesmo tendo-se passado 300 anos da morte do monarca. É desse tema que se ocupa o historiador português André Belo no livro “Morte e ficção do rei Dom Sebastião”, lançado recentemente pela editora Tinta-da-China Brasil.


QUESTÃO POLÍTICA

“É uma história muito rica e complexa”, diz o autor. “Portanto, a questão política é fundamental para entendê-la, porque ela conta com muitos braços e ramificações.”

Na época da guerra de Alcácer-Quibir, explica o historiador, Portugal tinha desavenças com a Espanha. Se Dom Sebastião morresse sem deixar herdeiros, a coroa corria o risco de passar para alguém de sangue castelhano, o que acabou ocorrendo.

Morto em batalha antes de se casar, Dom Sebastião deixou o trono vago. O cardeal Dom Henrique, seu tio-avô, foi o sucessor, mas morreu dois anos depois. Na sequência, veio, enfim, o espanhol Felipe II, que obteve a União Ibérica.

É nesse contexto que aparece Marco Tullio Catizone dizendo ser Dom Sebastião. “A maneira que ele encontrou de tentar personificar o rei foi através da literatura, escrevendo poemas”, afirma André Belo. “Ele tinha aprendido a ler e a escrever quando era criança. Tinha algum talento para a escrita. Então usou esse talento para fingir ser Dom Sebastião. Mas, como era italiano, escrevia em italiano”, acrescenta.

O boato cresceu e chegou a Portugal. Pessoas que frequentavam a corte na época de Dom Sebastião - e oportunistas que, supostamente, buscavam uma ascensão social - passaram a defender a ida do impostor à Lisboa para “recuperar” o trono.

A tentativa de golpe, no entanto, foi mal planejada. Catizone conhecia pouco da história de Dom Sebastião. Quando confrontado por autoridades de Veneza, aliada da Espanha, dizia não se lembrar de coisas básicas – como os nomes de pessoas que serviram diretamente o rei – e confundia as cidades onde estavam construídos os castelos de Portugal. Sobre não falar português, argumentou que, passados 20 anos desde a guerra no Marrocos, não lembrava de sua língua-mãe.


PUNIÇÃO

Catizone foi preso em Veneza. Seus defensores, idem. Entre eles, o dominicano Frei Estevão de Sampaio, figura importante para legitimar o sebastianismo.

“Frei Estevão foi quem (antes de ser preso) levou mais longe as tentativas para libertar Catizone”, segundo diz André Belo. “Ele é uma figura contraditória, porque acreditava em Catizone, mesmo tendo elementos suficientes para duvidar. Por isso eu tenho dúvidas sobre a real crença dele. Pode ser que tudo aquilo não passasse de uma ambição, de tentar conseguir que aquele homem fosse reconhecido como Dom Sebastião.”

A impostura, por sua vez, terminou mal. Por causa de um boato criado em Veneza, Catizone foi condenado à morte – mas, antes, teve a mão direita decepada. Grande parte dos entusiastas do sebastianismo também pagaram a impostura com a vida. A pena mais branda foi para um outro religioso, chamado Frei Boaventura: cem açoites e desterro perpétuo de Portugal.

“MORTE E FICÇÃO DO REI DOM SEBASTIÃO”
• André Belo
• Tinta-da-China Brasil (288 págs.)
• R$ 90

 

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