“Este foi um ano de reconstrução do audiovisual brasileiro”, diz o cineasta mineiro Helvécio Ratton, diretor de “Batismo de sangue” (2007) e “Menino Maluquinho” (1995), entre outros filmes. De 2016 a 2022, o setor penou devido à ineficiência de políticas públicas para o audiovisual, observa.
“Nós vivemos anos muito difíceis. Perdemos a cota de tela por dois anos e a Ancine (Agência Nacional do Cinema) ficou praticamente parada. Sinto que, agora, as coisas estão voltando ao normal, mas ainda com certa morosidade”, emenda Ratton.
Com editais abertos este ano e embora o ressuscitado Ministério da Cultura (MinC) tenha anunciado repasses milionários para projetos de cinema por meio do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e das leis Paulo Gustavo, Aldir Blanc e do Audiovisual, a assinatura de muitos contratos ainda não ocorreu. O próprio Ratton aprovou, em outubro, proposta junto ao FSA e aguarda a assinatura do documento.
“É claro que devemos entender que essa reconstrução acontece de maneira mais demorada. A gente derruba uma casa em um único dia, mas não consegue construí-la em um único dia”, compara o cineasta.
A demora do Senado em aprovar a recriação da cota de tela, mecanismo que garante espaços de exibição para produções audiovisuais brasileiras até 2033, foi outro complicador. A obrigatoriedade vigorava desde 2001, com base em medida provisória. A MP perdeu a validade em 2021 e só foi renovada no último dia 19 e agora depende da sanção do presidente da República.
Prioridade para blockbusters
Reflexos dessa morosidade podem ser medidos em números. Em 2023, apenas 1% dos ingressos vendidos foram de produções brasileiras. Além disso, sem a cota de tela, exibidores colocaram filmes nacionais em cartaz antes das 16h, período em que as salas ficam vazias. Os horários com maior previsão de público foram destinados aos blockbusters.
Em maio, quando lançou “O homem cordial”, o diretor brasiliense Iberê Carvalho viu seu filme disputar salas com as superproduções estrangeiras “Velozes e furiosos 10” e “Guardiões da galáxia – Volume 3”. Ele já havia enfrentado uma odisseia: gravou o longa em 2018, finalizou-o em 2019, mas não conseguiu lançá-lo devido à pandemia e ao apagão na pasta da Cultura, transformada em secretaria pelo governo Jair Bolsonaro.
“A gente veio de um momento supercomplicado devido à pandemia, que acabou acelerando o consumo de streamings. Quando as salas foram reabertas, as pessoas não assistiram mais aos filmes com a mesma frequência. Preferiam esperar para ver no streaming. Nesse contexto (da perda da cota), os cinemas não foram obrigados a exibir filmes nacionais. Tivemos, então, a ocupação predatória de poucos títulos”, diz Iberê.
Algo semelhante ocorreu com “O lodo”, lançado por Helvécio Ratton em abril. O filme, que chegou a ser comparado pela crítica com “O inquilino”, de Roman Polanski, passou antes das 16h na maioria das salas.
Direito desrespeitado
A volta da cota de tela é uma vitória. Mas não significa o fim da batalha travada há décadas, garante o cineasta Maurílio Martins, um dos fundadores da produtora mineira Filmes de Plástico – diretor de “Quinze” (2014), “Constelações” (2016) e “No coração do mundo” (2019), este último em parceria com o irmão Gabriel Martins, de “Marte Um” (2022).
“Vivemos coisas tão absurdas nos últimos anos que agora estamos comemorando o retorno da cota de tela”, destaca Maurílio. “Não estávamos brigando pela melhoria dela, para que fosse uma política pública mais próxima daquelas implantadas na Coreia do Sul e na França. Estávamos, simplesmente, brigando para ter de volta um direito nosso, que já tínhamos conquistado e nos foi tirado”.
A retomada do diálogo com o poder público é um dos pontos positivos destacados por Raquel Hallak, diretora da Universo Produções, responsável pelas mostras de cinema de Tiradentes, Ouro Preto e Belo Horizonte.
Ao final da edição deste ano da Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro, foram encaminhadas demandas ao governo federal.
“Reunimos 70 profissionais do audiovisual para fazer um balanço do que aconteceu, do que evoluiu, do que deixou de ser feito e do que é urgente. Isso foi apresentado para o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para a Secretaria de Comunicação Social do Governo Federal (Secom) e para o Supremo Tribunal Federal (STF). Também apresentamos essas demandas para o Ministério da Cultura. Todos foram muito receptivos e abertos, disponíveis em colaborar”, conta Raquel Hallak.