Berenice Menegale chega aos 90 anos determinada a oferecer estudo de música a jovens que não podem pagar por ele -  (crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

Berenice Menegale chega aos 90 anos determinada a oferecer estudo de música a jovens que não podem pagar por ele

crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

Com sua voz serena, elegância singular e comportamento discreto, a pianista Berenice Menegale, presidente da Fundação de Educação Artística (FEA), chega aos 90 anos assim como passou a vida inteira: sem fazer alarde.

 


Sua contribuição para Minas Gerais é gigantesca. Além de comandar a FEA, ajudou a criar o Festival de Inverno da UFMG, foi secretária de Cultura do estado e de BH, estimulou o surgimento do grupo musical Uakti, da companhia teatral Grupo Oficcina Multimédia e do Festival Internacional de Teatro Palco e Rua (FIT-BH).

 


Única mulher entre os cinco filhos do professor Heli Menegale, que dirigiu o Colégio Estadual Central, e da pianista Odette Régnier, Berenice nasceu em 1º de janeiro de 1934, em Belo Horizonte. Começou a tocar piano com 3 anos, de ouvido. Via um primo “tirar” foxtrots e, querendo fazer o mesmo, o mandava tirar os dedos das teclas e lhe ceder o lugar. As primeiras aulas começaram aos 5, com Pedro de Castro.

 


O ambiente familiar foi fundamental para a formação musical de Berenice Menegale. O pai era professor e poeta. O tio, José Guimarães Menegale, importante intelectual e assessor de Juscelino Kubitschek na Prefeitura de BH, trouxe o pintor Alberto Guignard, o musicólogo Curt Lange e o compositor Arthur Bosmans para a capital mineira.

 

Crianças durante aula de flauta na Fundação de Educação Artística

Crianças durante aula de flauta na Fundação de Educação Artística

Jair Amaral/EM/D.A Press

 

A menina na “Semaninha”

 

A pequena Berenice frequentou vários ambientes culturais. Em 1944, conferiu a polêmica 1ª Exposição de Arte Moderna em Belo Horizonte. Aquela “Semaninha de Arte Moderna” reunia obras de Guignard, Burle Marx, Candido Portinari, Di Cavalcanti, Lasar Segall, Tarsila do Amaral e Volpi.

 


A “Semaninha” deu o que falar na provinciana BH. Algumas telas foram retalhadas com gilete e pichações surgiram em tapumes no antigo Banco da Lavoura, ironizando a ousadia modernista.

 


Berenice absorvia tudo. Seu maior interesse, contudo, era o piano. Na pré-adolescência, foi matriculada em uma escola pública modelar, onde se aprimorou nas técnicas desse instrumento.

 


Em 1947, Guiomar Novaes, uma das pianistas mais importantes do mundo, expert em Chopin e Schumann, chegou a Belo Horizonte. Veio se apresentar a convite da Cultura Artística, instituição da qual o pai de Berenice foi o primeiro presidente.

 


Guiomar passava as tardes na casa dos Menegale tocando piano com aquela menina de 12 anos, dando aulas a ela. Tempos depois, promoveu um recital de Berenice em São Paulo e a incentivou a estudar na França, o que ocorreu em 1949.

 

 


Aos 15 anos, a jovem ingressou no curso superior do Conservatório Nacional de Paris. O ambiente competitivo entre os alunos – estimulado pela instituição – desagradou a Berenice. Para ela, a educação musical deveria ser inovadora e acolhedora, principal motivação para criar a Fundação de Educação Artística (FEA), anos mais tarde, junto de Sergio Magnani, Eduardo Hazan, Vera Nardelli e Venicio Mancini.

 


Berenice voltou ao Brasil acompanhada do pianista polonês Józef Turczynski, que se tornou seu professor. Embarcou novamente para a Europa e ingressou na Academia de Viena. Ao retornar ao Brasil, fez carreira como instrumentista, apresentando-se tanto no país como na Europa. Mas deixou o palco para se dedicar à educação.

 


No final de 1962, Berenice Menegale e Eduardo Hazan, pianista carioca radicado em Minas, começaram a esboçar as primeiras ideias do que seria a FEA, instituição que celebrou seus 60 anos neste 2023.

 


“Queríamos fazer a renovação do ensino (de música). Nossas conversas eram nesse sentido. A gente não sabia muito bem o que fazer, de que maneira fazer, mas havia algumas coisas no ar que nos ajudaram”, conta ela.

 


Uma dessas “coisas” foi a iniciativa de Darcy Ribeiro, então ministro da Educação, de fomentar a criação de centros interescolares. “De maneira geral, ele estava querendo a renovação da educação e novas propostas na área. Nós tínhamos pensado em uma escola à qual as crianças viessem para ter um ensino diário de música”, comenta.

 


A Fundação de Educação Artística (FEA) já nasceu inovadora, oferecendo educação musical dentro de um espaço de liberdade, criação, reflexão e acolhimento.

 


“Sempre pensamos o seguinte: ninguém vai deixar de estudar na Fundação por não ter dinheiro para pagar”, resume Berenice. Desde sua criação, a entidade mantém campanha para doação de bolsas. Entre 500 alunos, de 100 a 150 são bolsistas.

 

Músicos Arthur Andrés, Décio Ramos, Marco Antônio Guimarães e Paulo Santos

Décio Ramos, Marco Antônio Guimarães, Arthur Andrés e Paulo Santos formaram o Uakti dentro da FEA

Maria Tereza Correia/EM/D.A Press/9/9/03

 

Celeiro de talentos

 


O trabalho da Fundação de Educação Artística (FEA) conquistou o respeito do Brasil. Celeiro de músicos talentosos, a instituição é também berço de inovadoras iniciativas culturais.

 


“Desde o início, nós sempre promovíamos vários projetos, cursos de férias e concertos – um deles é a série ‘Manhãs musicais’, que existe até hoje”, conta Berenice. “Um desses projetos era a formação de pequena orquestra de câmara. De repente, recebi um telefonema do Marco Antônio Guimarães, dizendo que queria voltar para Belo Horizonte, perguntando se tinha lugar para ele na orquestra”, relembra.

 


Quando ligou para BH, o genial criador do Uakti já ostentava currículo de peso. Formado em música, estudou na Bahia – especializou-se com Walter Smetak e Ernst Widmer, dois inovadores mestres – e integrava a Orquestra Sinfônica de São Paulo.

 


“Foi assim que ele voltou”, conta Berenice. “Ficou na Fundação trabalhando por muito tempo. Construiu um teatrinho lá nos fundos, onde ele fazia de tudo, né?”, comenta ela, destacando os instrumentos musicais inventados por Marco Antônio a partir de materiais não convencionais, como tubos de PVC, lâminas de vidro e cabaças.

 

Berço do Uakti

 

Foi também na Fundação que Marco Antônio Guimarães reuniu dois percussionistas (Paulo Sérgio Santos e Décio Ramos) e um flautista (Artur Andrés Ribeiro) para desenvolver técnicas de execução dos instrumentos. Resumindo: aquele pequeno teatro da FEA foi o berço do Uakti.

 


Porém, a Fundação desempenhou papel importante não apenas no surgimento do Uakti. Antes disso, em 1967, Berenice havia feito parte do grupo de criadores do Festival de Inverno da UFMG, realizado durante anos com o suporte da FEA. A instituição também foi berço do inovador Grupo Oficcina Multimédia (GOM), companhia de teatro comandada por Ione de Medeiros.

 


Entre 1975 e 1999, Berenice Menegale deu aulas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Primeira secretária municipal de Cultura da capital mineira, em sua gestão surgiu o Festival Internacional de Teatro Palco e Rua (FIT-BH). Ela também comandou a Secretaria de Estado de Cultura.

 


De tudo o que fez, seu maior orgulho é garantir educação musical para todos, mesmo que o aluno não tenha recursos. “Isso é fundamental, porque há muitos jovens com talento e aptidão, mas sem um lugar para surgir”, ressalta a professora e pianista. “Em qualquer ambiente – do mais pobre, do mais simples, ao mais beneficiado – tem talentos. Então, a gente vem fazendo o possível para receber os jovens que querem estudar música mas não podem pagar”.

 


Berenice Menegale não pretende fazer festa para comemorar seu aniversário neste 1º de janeiro. Apresentará apenas um concerto restrito aos amigos mais próximos, no final do mês. Chega aos 90 anos sem muito alarde, como é de seu feitio, mas com muitas histórias para contar.