“Encontrei uma boutique em que posso trabalhar só meio horário. Pensei que poderia trabalhar lá alguns dias por semana depois da escola”, ela diz. “Pode esquecer isso”, ele retruca. “Achei que poderia ser divertido”, ela insiste. “Olha, sou eu ou uma carreira, querida. Quando eu te ligo, preciso que você esteja disponível para mim”, ele encerra o assunto.
Este diálogo acontece em meados de 1963. Priscilla Beaulieu, então com 18 anos, está absolutamente entediada. Ela estuda em colégio católico e não deve conversar com ninguém. Tampouco deve ficar no gramado de casa – as pessoas não podem vê-la ali. É casa/escola/casa. A vida só tem alguma graça quando ele está presente – e ela tem que estar, invariavelmente, acessível. Para ele e ninguém mais.
Depois de duas semanas de pré-estreias, “Priscilla”, filme de Sofia Coppola, chega nesta quinta (4/1) nos cinemas. O diálogo reproduzido aqui meio que conduz todo o retrato que a cineasta faz da mulher de Elvis Presley, mãe de sua única filha, Lisa Marie.
O filme, que deu à americana Cailee Spaeny o prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza (categoria a qual ela concorre no Globo de Ouro), tem a própria Priscilla Presley, hoje com 78 anos, como produtora-executiva. O roteiro, escrito por Sofia, é baseado no livro de memórias “Elvis and me” (1985, inédito no Brasil).
Mais do que nenhuma diretora de seu tempo, Sofia sabe como abordar a melancolia feminina, principalmente aquela que aparece no espaço privado. Foi assim com sua estreia em longas, “As virgens suicidas” (1999), foi também assim com o filme que lhe levou ao grande público, “Maria Antonieta” (2006).
De seus oito longas, apenas “Um lugar qualquer” (2010), traz um homem como protagonista. Os demais são sustentados por mulheres jovens cujas vidas interiores são muito mais interessantes do que os que as circundam percebem.
Priscilla talvez seja a mais solitária delas. Sob a perspectiva temporal e o olhar de hoje, não havia realmente chance para aquela garota. Ela tinha apenas 14 quando conheceu Elvis, 10 anos mais velho. A saudade de casa os uniu. No final da década de 1950, ambos estavam contra a vontade na Alemanha – ela por causa do padrasto, ele cumprindo serviço militar (mas o filme não se aprofunda sobre isso).
O ídolo e a menina
Elvis era ídolo mundial, Priscilla uma adolescente que descobria a vida. Ela caiu de amores, ele correspondia bastante, sempre que sua agenda permitia. Quando a temporada alemã terminou, ele voltou para os EUA. Ela permaneceu apaixonada e à espera. Atendeu a todos os chamados até que se mudou definitivamente para Graceland, em Memphis, Tennessee.
O fato de o ponto de partida ter sido um livro de memórias, e não uma biografia, faz toda a diferença. Sofia não está preocupada com alguns fatos – o longa não explica o porquê de Elvis estar na Alemanha; o coronel Tom Parker, seu empresário controlador, é citado apenas um par de vezes. A interpretação de Jacob Elordi é discreta, nada a ver com a mimetização que Austin Butler fez em “Elvis” (2022), de Baz Luhrmann.
O que importa aqui é Priscilla, e principalmente como ela se sentia estando, ou não, com Elvis. A interpretação de Cailee Spaeny é cheia de nuances. No início da história, a adolescente inocente se surpreende quando é alçada, quase sem querer, ao posto de número 1 do Rei do Rock. Os olhos arregalados de menina, a respiração sobressaltada, vão dando lugar ao olhar perdido quando ela amadurece, quase forçosamente, na segunda parte da narrativa.
Que garota nos anos 1960 poderia reclamar da vida de Priscilla? Ela tinha tudo: Elvis, uma mansão e até um cachorro para lhe fazer companhia. As colegas de escola sonham com Elvis; Priscilla, que dorme com ele, não tarda a descobrir que a vida imaginada não existe.
Elvis se recusa a fazer sexo com ela (mas não se abstém com as outras), quer mantê-la virgem até o casamento. As pílulas para dormir são uma constante para o casal. A vida pública também exige muito. Elvis define a cor do cabelo dela, o que ela vai ler, a maquiagem, até as roupas que vai vestir – um paralelo do que o próprio astro sofria nas mãos do coronel Tom Parker.
Graceland emerge como uma fortificação para a personagem, que parece não se adequar à mansão de decoração exagerada, sempre cheia de gente quando Elvis está presente. Priscilla, tratada como bibelô, vê-se como mais uma personagem no séquito do astro.
A decisão de largar tudo – virada de chave enorme para uma jovem que nunca teve vida própria – é tratada de forma superficial pelo filme. Em sua segunda metade, o longa faz quase uma colagem de fatos importantes dos dois personagens. É tudo rápido demais, quase descuidado. Quando a alforria finalmente acontece, só há alívio – da protagonista e do próprio público.
“PRISCILLA”
(Itália/EUA, 2023, 113min., de Sofia Coppola, com Cailee Spaeny e Jacob Elordi) – Em cartaz na Sala 2 do UNA Cine Belas Artes, às 16h10 e 20h20; na Sala 2 do Centro Cultural Unimed-BH Minas, às 18h30; e na Sala 2 do Cineart Ponteio, às 14h20 e 18h50.