“Ela tinha o carnaval no sangue”. Quem garante é Márcio Guima, sobrinho de Clara Nunes. Em 1964, a jovem cantora iniciante foi Rainha do Carnaval de Belo Horizonte, com direito a cetro e coroa. Sessenta anos depois, a cidade a homenageia com a exposição em cartaz no Museu da Moda (Mumo), reunindo 50 figurinos, adereços, documentos e fotografias de seu acervo.
A mostra “Clara Nunes – Eu sou a tal mineira” destaca a profunda relação da cantora com a cultura brasileira, a religiosidade de matriz africana, a moda e também com o carnaval. Esta semana, a exposição recebeu a visita da Corte Momesca de BH.
Quatro décadas após sua morte, Clara é lembrada como uma espécie de símbolo da Portela. No carnaval de 1975, foi intérprete oficial da escola e cantou o samba-enredo “Macunaíma”. Vagner Fernandes, autor da biografia “Clara, guerreira da utopia” (Agir), conta que ela chegou a flertar com a Mangueira, que não lhe deu muita importância.
“Clara foi parar na Portela por conta de algo singular. Era namorada de Aurino, irmão do cantor Eduardo Araújo, ambos mineiros. Aurino e Carlos Imperial eram grandes amigos. Certa vez, Imperial ficou preso na Ilha Grande por criticar o regime militar, fazendo companhia ao Natal da Portela. Aurino ia sempre visitar o Imperial e acabou se aproximando do Natal, que o convidou a ir à Portela. Quando Natal saiu da prisão, Aurino foi vê-lo e levou Clara com ele. Natal, então, estendeu um tapete vermelho para ela”, diz o biógrafo.
“Clara abraçou a Portela e a Portela abraçou Clara. Ela se tornou portelense a partir daquele momento de carinho que a escola lhe proporcionara. De lá nunca mais saiu, até sua morte. Clara puxou samba na Portela por três anos”, comenta Vagner Fernandes.
O escritor ressalta o papel importante da cantora para que fossem reconhecidos os mestres do samba como Candeia, Cartola, Nelson Cavaquinho e Dona Ivone Lara. “Clara foi a primeira a gravar Dona Ivone Lara e torná-la conhecida na grande mídia, com o famoso álbum 'Alvorecer'.”
A cantora mineira não conheceu o Sambódromo carioca, inaugurado em 1984. Ela morreu em 1983, aos 40 anos, devido a um choque anafilático ao se submeter a cirurgia de varizes. “A escola a vê como personagem fundamental, como expressão cultural”, resume Vagner Santos.
Sobrinho de Clara Nunes, Márcio Guima comenta que a tia estava presente em todos os desfiles da Portela e foi madrinha da Velha Guarda da azul e branca. “Minha tia Maria Gonçalves, que criou a Clara, dizia que o grande sonho dela era cantar na avenida.”
Festa de preto
Aguerrida defensora de causas sociais, Clara combateu a misoginia, o racismo religioso e o preconceito racial. “Ela abraça tudo isso, mas não fica levantando bandeira. A própria arte dela e seu repertório já diziam tudo. A forma como se vestia já era um soco no estômago da sociedade preconceituosa em relação às mulheres e àqueles que abraçavam as religiões de matriz africana, aos pretos. A importância de Clara é grande, e o carnaval é uma festa de preto”, afirma.
Na exposição em cartaz no Mumo, percebe-se a forte influência africana nas roupas, figurinos e adereços usados pela cantora.
“Além de adotar as religiões de matriz africana como algo importante em sua vida, ela buscou fazer de seu trabalho instrumento de conscientização da sociedade sobre a questão do acolhimento. Não digo de tolerância, mas de respeito às religiões de matriz africana”, conclui o autor de “Guerreira da utopia”.
Filhas de Clara em fevereiro
Formado na capital mineira por mulheres, o bloco Filhas de Clara vai desfilar em 18 de fevereiro a partir das 14h30, com concentração na Avenida Clara Nunes, 88, Renascença, bairro onde a cantora morou entre 1958 e 1964.
“Se puder, venha de branco”, convida o bloco em post no Instagram, em alusão ao tradicional figurino da artista.
“CLARA NUNES – EU SOU A TAL MINEIRA”
Exposição do acervo de Clara Nunes. Museu da Moda de Belo Horizonte (Mumo), Rua da Bahia, 1.149, Centro. Aberto de quarta-feira a sábado, das 10h às 18h. Em cartaz até dezembro de 2025. Entrada franca.