Caio Blat interpreta Riobaldo, e Luiza Lemmertz é Diadorim, em

Caio Blat interpreta Riobaldo, e Luiza Lemmertz é Diadorim, em "O diabo na rua, no meio do redemunho", que deve estrear nos cinemas neste semestre

crédito: Marco Sobral/Divulgação

TIRADENTES (MG) - Viver é muito perigoso. Espécie de lema de Riobaldo, protagonista de “Grande sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, a frase pontua o livro sobre o jagunço. Na adaptação que Bia Lessa fez do clássico rosiano para o cinema (ou tradução, como ela prefere definir), que recebeu o título “O diabo na rua, no meio do redemunho”, a frase aparece uma única vez. E, mesmo assim, embaralhada a outras falas do protagonista.

“É verdade. Ela não aparece tanto no filme. Não foi proposital. Foi algo ao acaso. Mas acho que o ‘Viver é muito perigoso’ está lá, no filme, em todas as cenas, mesmo sem ter sido dita”, afirmou a diretora a este repórter durante coletiva de imprensa realizada nesta segunda-feira (22/1) na programação da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes.

O longa fez sua pré-estreia nacional no festival, na noite de domingo (21/1), e tem estreia prevista no circuito comercial ainda no primeiro semestre deste ano.

Inspirado na peça “Grande sertão: Veredas” (também de Lessa), cuja primeira montagem ocorreu em 2017, o longa não é uma reprodução fidedigna do romance, e sim “recortes, incisões, operações sobre a obra do Guimarães Rosa, numa relação de admiração, mas não de submissão”, conforme apontou o crítico de cinema Daniel Schenker em roda de conversa sobre o filme, momentos antes da coletiva.

No filme, Caio Blat, Luiza Lemmertz, Leo Miggiorin, Lucas Oranmian e José Maria Rodrigues dão vida a, respectivamente, Riobaldo, Diadorim, Zé Bebelo, Joca Ramiro e Hermógenes. No entanto, os atores desempenham também papéis híbridos, sendo ora bichos, ora plantas e elementos cênicos.

Mesmo com todos esses corpos “muitas vezes fragmentados, destituídos de suas totalidades e que oscilam entre extremos”, conforme ressaltou a diretora, o filme consegue manter um fluxo narrativo sem grandes atritos para contar a história de Riobaldo, que, ao lado do amigo Reinaldo/Diadorim – por quem ele se apaixona posteriormente – pretende vingar a morte do valentão Hermógenes.

Com imagens inteiramente gravadas em estúdio, Bia Lessa deixa claro desde a primeira cena do filme que sua proposta não é lançar mão da tecnologia para produzir ilusão de realidade. Pelo contrário, ela opta pela ausência – vide os atores que interpretam elementos cênicos além dos personagens tradicionais – e pelas cores negras ao fundo do cenário e no figurino.

“Eu não queria fazer uma peça filmada. Não porque eu pense que uma peça filmada é menos que um filme. Mas é porque eu queria colocar ali coisas que dialogassem com o cinema e outras questões que não estavam no espetáculo”, contou a diretora.

Na peça de 2017, a violência era muito mais predominante, lembrou a cineasta. Ao passo em que o amor entre Riobaldo e Diadorim, embora estivesse presente no espetáculo, ficava em uma espécie de segundo plano.


ESPAÇO E MOVIMENTO

“Sem contar que, no espetáculo, o público via de uma única perspectiva. Enquanto no filme nós temos aqueles planos abertos e a grua, que permitiu gravar de cima. Então, eu queria ter a coragem de começar do zero com tesão e com alegria. Ter a coragem de ter o espaço e o movimento a meu favor”, afirmou.

Em duas horas e 10 minutos de duração, “O diabo na rua, no meio do redemunho” apresenta uma estética muito semelhante à de “Dogville” (2003), de Lars von Trier, o que não foi obra do acaso, segundo a diretora. Assim como a cena final remete ao quadro “A origem do mundo”, de Gustave Courbet.

“Não tenho um pensamento ‘planar’. Quando estabeleço o conteúdo com que eu vou trabalhar no teatro, por exemplo, as referências que pego nunca são as referências do teatro, e sim da arquitetura, das artes plásticas, da música. Acho que o filme é um pouco isso, até porque todos nós somos muitas coisas. Ninguém é só bonito, assim como ninguém é só feio; ninguém é só homem, ninguém é só mulher. Somos muitas coisas e temos de lidar com isso”, disse.

Bia Lessa é uma artista de personalidade vibrantes. Durante a conversa com os jornalistas, ela se levantou, andou para lá e para cá, interpretou os gestos que os atores fizeram no filme e até jogou uma cápsula de café expresso no chão duas vezes para dar exemplo de uma teoria que explicava: a de que, por mais que a cápsula caia mais de uma vez no chão, a queda nunca será da mesma forma, assim como a atuação nunca vai ser a mesma, por mais que seja ensaiada muitas vezes.

No set, contudo, Lessa mudava de figura. “Tinha dia em que nós ficávamos interpretando pássaros por cerca de quatro horas. Era um processo, de certa forma, desgastante”, contou Lucas Oranmian, que também participou da coletiva.

“A gente tinha apenas 17 dias para gravar. Então não tinha como a gente perder tempo”, afirmou a diretora. “Não dava para a gente perder tempo com aqueles cumprimentos demorados ao chegar e nem com cafezinho. Tinha que ser uma dinâmica rápida. E nisso eu sou muito rigorosa: se marcamos de começar às 6h, vamos começar às 6h, não tem jeito.”

DUPLA ESTREIA

Em maio, está prevista a estreia de outra adaptação de “Grande sertão: Veredas”, também com Caio Blat no papel de Riobaldo. Dirigido por Guel Arraes, “Grande sertão” transpõe o universo dos jagunços sertanejos para o território dos bandidos da periferia urbana nos dias atuais. O filme conta com Luisa Arraes, Rodrigo Lombardi, Luís Miranda e Eduardo Sterblitch no elenco. “Muita gente me pergunta se não é ruim, no mesmo ano, estrear dois filmes sobre ‘Grande sertão: Veredas’. Mas eu acho que não. Muito pelo contrário, acho extremamente positivo ter cada vez mais gente se debruçando sobre a obra de Guimarães Rosa e, além disso, o Riobaldo que o Caio entrega no filme do Guel é um Riobaldo diferente do que ele entrega em ‘O diabo na rua, no meio do redemunho’”, disse Bia Lessa.

*O jornalista viajou a convite da Universo Produção.