Um caso real é o ponto de partida de "As bestas", thriller espanhol cheio de climas recém-estreado no UNA Cine Belas Artes. Melhor não se ater ao fato para não estragar a história, que mantém o suspense até o último minuto. Vencedor de nove prêmios Goya (o Oscar espanhol), além do César (seu respectivo francês) de Filme Estrangeiro, é dirigido por Rodrigo Sorogoyen, indicado ao Oscar pelo curta "Madre" (2019).
A sequência inicial já nos prepara para cenas fortes. Em câmera lenta, assistimos a uma manada de cavalos selvagens. Em segundo plano está um grupo de homens. Em dado momento, dois deles se apossam de um dos animais, utilizando apenas os próprios corpos. São os chamados aloitadores, aqueles que dominam os cavalos durante a rapa (captura, em galego). A câmera se aproxima do cavalo, que estrebucha.
A história em si tem o início a seguir. Em um bar do interior da Galícia, entre muitos tragos, um grupo de homens tem uma discussão acirrada. O mais eloquente deles é Xan (Luis Zahera). A conversa, em altos brados, gira em torno da honestidade do filho de um morador local. Xan se exaspera, não ouve todos os argumentos. Os mais razoáveis resolvem acabar com a conversa. Escanteado até este ponto, o grandão Antoine (Denis Ménochet) se levanta e se dirige à porta. "Vai sair sem falar nada, Francês?", provoca Xan.
A câmera sai deste ambiente fechado e vamos conhecer as redondezas. Não há pressa, afinal, estamos em um lugar perdido da Galícia. São montanhas, quedas d'água, florestas, casas de pedra, um ambiente tipicamente rural, que pouco viu a ação do homem. Foi neste local que Antoine e a mulher Olga (Marina Foïs) escolheram viver.
Já avós e aposentados, decidiram que o lugar seria seu paraíso na terra – vivem das próprias mãos. Cultivam uma horta, onde vendem seu cultivo orgânico na feira numa cidade próxima. Também compraram casas centenárias de pedra. É Antoine que está fazendo a reforma, para que novas famílias também vivam ali. Já há alguns anos no lugar, hoje falam e compreendem bem o espanhol.
Rixa com os vizinhos
Xan e seu irmão caçula, o limitado Lorenzo (Diego Anido), vivem com a mãe idosa na casa vizinha à do casal francês. A vida é dura para eles, que ganham trocados fazendo bicos. Nunca se deram com os vizinhos, que consideram ricos e superiores. Tampouco gostam de estrangeiros no local. Mas o que mais os incomoda foi que a negativa dos franceses impediu a venda de terras a uma empresa de turbinas eólicas – o dinheiro que receberiam, os irmãos acreditam, os tiraria da miséria.
O cenário é este. O que se dá a seguir é uma tensão crescente. As provocações começam quase infantis, uma brincadeira na hora de dar uma carona, umas garrafas quebradas na propriedade dos franceses. Antoine começa a não aceitá-las, com uma pequena câmera passa a gravar as afrontas.
Olga implora para que o marido cesse com as investidas. É mais fácil falar do que fazer, dado o comportamento agressivo de Xan e Lorenzo. O conflito parece bastante simples: enquanto Xan se ressente com Antoine além da razão, este se recusa a abandonar suas terras. Há uma ruptura na história, e a segunda parte traz como foco a relação entre Olga e Marie (Marie Colomb), sua filha com Antoine. Há muita tensão ali também, com frustrações de ambas as partes.
O que faz de "As bestas" um filme muito além do que uma briga de vizinhos – caipiras ignorantes de um lado; pessoas bem informadas, mas intolerantes, de outro – é a maneira como ele foi realizado. Pairando sobre o conflito irresolúvel, está um lugar fantasma, que encontra seu próprio encanto em meio à desolação.
Neste cenário que desperta amores e ódios, a história, em síntese, acaba se tornando mais sobre a trágica e inevitável disputa entre os dois homens do que sobre qualquer luta ou bandeira que eles pudessem empunhar.
“AS BESTAS”
(França/Espanha, 2022, 137min.). Direção: Rodrigo Sorogoyen. Com Denis Ménochet, Marina Foïs e Luis Zahera. Em cartaz às 14h e 20h30, no UNA Belas Artes 1.
HISTÓRIA ORIGINAL
O caso real em que se baseia o filme "As bestas" gerou também um documentário, "Santoalla" (2016), de Andrew Becker e Daniel Mehrer, não disponível no Brasil.
Se na história ficcional o casal é francês, na vida real o caso ocorreu com os holandeses Martin Verfondern e Margo Pool. O longa foi nomeado com o nome da aldeia, um lugar perdido na região da Galícia onde viviam sete pessoas.