Gabriel García Marquez, Nobel de Literatura, adorava suas canções. Do alto de seu 1,12 metro de altura, ele vendeu 45 milhões de discos. Foi o primeiro latino a emplacar 1 milhão de álbuns nos Estados Unidos. Lotou quatro vezes o Carnegie Hall, em Nova York, duas delas na mesma noite. Certa vez, ao desembarcar em Luanda, foi recepcionado por 3 mil fãs no aeroporto da capital de Angola. Até hoje está entre os 10 maiores vendedores de discos da história do Brasil.

 

Há exatos 10 anos, calou-se o vozeirão de Nelson Ned. Ele morreu em 5 de janeiro de 2014, no Hospital Regional de Cotia (SP), aos 66 anos, em decorrência de choque séptico, sepse, broncopneumonia e acidente vascular cerebral. Desde 2003, vivia numa casa de repouso, após sofrer dois AVCs. As irmãs cuidaram dele desde então – longe da fama, praticamente esquecido pelo Brasil.

 

Shows de Nelson Ned atraíam multidões em países da América Latina

Acervo pessoal

 

Nos anos 1970/1980, este mineiro de Ubá era “O” astro da canção romântica latino-americana – adorado no México, Estados Unidos, Portugal, África lusófona e América do Sul. No entanto, sofre uma espécie de “otracismo” no Brasil, país que demorou, mas hoje reconhece o valor de Odair José e Waldick Soriano, entre outros ídolos outrora tachados de “cafonas”.

 

“Tudo passará”, faixa título do segundo álbum de Nelson Ned, lançado em 1969, é um clássico. “Mas tudo passa, tudo passará/ E nada fica, nada ficará/ Só se encontra a felicidade/ Quando se entrega o coração”, diz a música regravada incontáveis vezes, plagiada – inclusive pelo Gipsy Kings, no auge do sucesso – e alvo de processos, vencidos pelo autor.


Fotos na mesa

 

Em dezembro de 2013, poucos dias antes de morrer, Nelson Ned foi tema de reportagem de Ana Clara Brant no Estado de Minas. Os dois conversaram em São Paulo, durante visita dele à casa das irmãs Neyde e Neuma Pinto. Afastado há muitos anos dos palcos, achava que ainda fazia shows. Do passado glorioso só restavam fotos sobre a mesa da sala.

 

– Do que você tem mais saudade, Nelson? – perguntou a repórter.

 

– Tenho saudades de mim mesmo – respondeu.

 

Leia a última entrevista de Nelson Ned, concedida ao Estado de Minas

 

No final de 2023, o jornalista André Barcinski fez justiça a este grande artista. Lançou o livro “Tudo passará: A vida de Nelson Ned – O pequeno gigante da canção” (Companhia das Letras). Mais que biografia, é um documento sobre a cultura brasileira.

 

André relembra o auge do homem que não se dobrou ao nanismo, enfrentou o preconceito (inclusive da imprensa) muito antes do bullying frequentar manchetes. E também relata a derrocada do astro latino-americano.

 

No final da década de 1950, a família D'Avila Pinto se mudou de Ubá, onde Nelson nasceu, para Belo Horizonte. Ainda garoto, ele cantava na TV Itacolomi e tentava a vida na noite, assim como os contemporâneos Clara Nunes e Milton Nascimento. Trocou BH por São Paulo, compôs para muita gente, tornou-se protegido de Chacrinha e amigo de Silvio Santos.

 

“Não tenho o que esconder, sou pequeno e boto pra quebrar!”, declarou certa vez. E botava mesmo. Seu primeiro álbum se chamava “Um show de noventa centímetros” (1964), numa época em que não se ouvia falar de acessibilidade e capacitismo. Em 1970, gravou “Canción popular”, que o tornou conhecido na América Latina. Chico Buarque reconheceu, ao visitar Cuba, que Nelson era o brasileiro mais amado por lá. Pablo Escobar mandava o próprio avião buscá-lo para se apresentar na Colômbia.

 

O jovem Nelson na escadaria da Igreja São José, em Belo Horizonte, em março de 1963

José Nicolau/O Cruzeiro/EM DA Press

 

Briga com jornalistas

 

Sucesso lá fora – suplantou, de longe, Julio Iglesias –, amigo do ditador haitiano Papa Doc e de reis da cocaína, o autor de “Tudo passará” viveu às turras com a imprensa brasileira, que tachava sua música romântica de cafona e ironizava seu tamanho. Era alvo de “O Pasquim” e Ronaldo Bôscoli.

 

“Lotei o Carnegie Hall duas vezes na mesma noite, vocês não falaram nada, e quando a Bossa Nova foi lá com dez artistas, tem mil matérias. Por que vocês não escrevem sobre mim?”, questionou. “A Maria Bethânia canta as mesmas coisas da Ângela Maria e da Núbia Lafayette. Só que usa o pedigree: é irmã do Caetano Veloso. Pois bem: Caetano Veloso pode andar pelado pela rua em Nova York ou Miami que não será reconhecido”, declarou Nelson, idolatrado pelos hispânicos nos EUA.

 

Era brigão e tinha defensores de peso. “Os artistas e intelectuais brasileiros dão risinhos de zombaria ou mudam de assunto quando eu revelo que tenho em casa todos os discos de Nelson Ned”, afirmou Gabriel García Márquez ao visitar o Rio de Janeiro. Ele escrevia ao som dos boleros do brasileiro.

 

 

Doses cavalares de cocaína, álcool e remédios eram suportes de Nelson. Em meio à vida familiar caótica (com episódios escandalosos), dores em todo o corpo e à rotina do showbusiness internacional, o porta-voz dos corações rejeitados viu sua carreira definhar a partir dos anos 1990.

 

A fortuna evaporou, ele se tornou evangélico e passou a se dedicar ao repertório gospel. Na década de 2000, o sonho acabou de vez. Teve o primeiro AVC, passou a viver de direitos autorais. Em 2012, um incêndio na mansão onde morava a ex-mulher reduziu a cinzas a bela coleção de discos de ouro.

 

André Barcinski, biógrafo de Nelson Ned, diz que o mineiro foi o artista brasileiro mais famoso do mundo nos anos 1970/1980

Youtube/reprodução

 

Megassucesso internacional "eclipsou" carreira no Brasil

 

Nelson Ned foi o artista brasileiro mais famoso do mundo nos anos 1970/1980, garante André Barcinski.  “Ele era muito mais que um cantor romântico. Suas músicas falavam de amor, claro, mas sempre do ponto de pista dos excluídos e desprezados”, escreveu o jornalista, vencedor do Prêmio Jabuti com o livro “Barulho” e diretor de “Maldito”, documentário sobre Zé do Caixão.

 

Ao analisar o “apagamento” de Nelson Ned no Brasil, Barcinski diz que a dimensão do sucesso dele no exterior acabou afetando sua carreira na terra natal.

 

“Nelson foi muito famoso no Brasil durante um período, nos anos 1970. Mas foi tão famoso na América Latina – especialmente México e Colômbia –, além dos Estados Unidos hispânico, que essa fama no exterior eclipsou, e muito, a fama dele no Brasil. As pessoas aqui não tinham noção de que ele era tão famoso lá fora”, comenta, lembrando que o cantor passava de oito a dez meses fora do país.

 

Barcinski também ressalta o impacto da relação conflituosa de Nelson com a mídia brasileira, sobretudo a imprensa musical.

 

“Ele foi alvo de muitas matérias negativas, falando da – entre aspas – breguice de sua música, fazendo piadas com o tamanho dele, sem dar o devido crédito à fama que tinha e às conquistas dele no exterior. Acho que a soma de tudo isso ao péssimo gerenciamento da carreira, especialmente após a morte de seu empresário, Genival Melo, nos anos 1990, contribuiu para o ostracismo que hoje cerca Nelson Ned no Brasil. As pessoas não sabem da importância dele”, analisa. “Espero que o livro ajude a tirar um pouco da poeira que há por cima do nome do Nelson”, diz.

 

Este mineiro batalhou para conquistar espaço no mercado internacional, cantando e gravando em espanhol. Atualmente, artistas como Anitta seguem a mesma trilha, de olho no universo hispânico com o reforço das redes sociais.

 

Nelson fez isso só no gogó, naqueles tempos sem internet e streaming, quando as pessoas pagavam para ter o disco físico. Em certa época, dois LPs dele ficaram entre os 20 mais vendidos em Nova York, à frente de Roberto Carlos e Julio Iglesias.

 

Roberto Carlos não era páreo para Nelson Ned em países da América Latina e junto à comunidade hispânica dos EUA

Arquivo CB/D.A Press

 

Admiração do Rei Roberto

 

O Rei, aliás, chegou a consolar Nelson por sua carreira no exterior não ter a mesma dimensão no Brasil, conta Barcinski no livro.

 

“Um dia, nós estávamos na Gallery tomando champanhe, o Roberto Carlos ficou meio de fogo e começou a conversar comigo abertamente, o que é um fenômeno, acho que ele não conversa abertamente nem com a esposa, ele é mais trancado que o cofre do Tesouro americano”, afirmou Nelson. “Começou a falar pra mim: 'Quem dera eu ter o sucesso que você tem no exterior. Você não deve ficar chateado por não ter sucesso aqui no Brasil, o seu sucesso no exterior é mais importante. Hoje você está sentado na Gallery comigo por causa do seu sucesso no exterior'. Eu queria ter um gravador na hora para registrar o que o Roberto disse”, comentou.

 

Ao analisar o legado do ídolo latino-americano 10 anos após sua morte, o biógrafo resume: “A própria história dele basta”. E enumera as vitórias do mineiro de Ubá.

 

“Nelson vendeu 45 milhões de discos. Até hoje é um dos 10 maiores vendedores de discos da história do Brasil em sua carreira curta, breve se comparada às de Roberto Carlos, Benito de Paula, Nelson Gonçalves e Ângela Maria. Foi o artista mais famoso do Brasil durante uma década no mundo inteiro, vendeu 1 milhão de discos nos Estados Unidos, lotou o Carnegie Hall quatro vezes”, argumenta Barcinski.

 

“Pena que muita gente não conheça esse legado. Espero que as informações do livro ajudem a mostrar quem foi este cara de fato”, conclui o autor da biografia do “pequeno gigante da canção”.

 

“TUDO PASSARÁ – A VIDA DE NELSON NED, O PEQUENO GIGANTE DA CANÇÃO”


• Livro de André Barcinski
• Companhia das Letras
• 276 páginas
• R$ 79,90
• R$ 39,90 (e-book)

 

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