Um belo dia, os compadres gavião e coruja se encontram e começam a conversar. Ele está com fome e ela, preocupada com a segurança dos filhos. O arremate é trágico e, ao final, o narrador entra para anunciar uma espécie de moral da história. 

Parece uma fábula de La Fontaine, mas é Graciliano Ramos, no livro inédito que só vê a luz do dia, agora, porque a obra do autor acaba de entrar em domínio público. 

É possível que, de outro modo, “Os filhos da coruja” nunca fosse publicado. Primeiro, porque é um poema. Segundo, porque foi feito sob um pseudônimo, J. Calisto. Cioso de como sua obra era apresentada ao público, o autor deixou instruções explícitas proibindo que textos escritos nessas condições fossem editados após sua morte. 

“Ele achava ruim, se considerava um mau poeta”, resume Ricardo Ramos Filho, neto do alagoano, que recebe a notícia desta edição com “surpresa e tristeza”, tachando-a como “uma sacanagem enorme”. 

“Graciliano deixou com meu pai determinações que sempre respeitamos, e agora que entra em domínio público, a primeira coisa que fazem é desrespeitar um desejo dele”, afirma. “Sei que Graciliano não queria isso. Ele fazia revisão riscando palavras porque não queria que ninguém visse, queimava a palavra com ponta de cigarro para que não fosse possível ninguém descobrir.”

 



A família não tem mais controle algum sobre isso. Segundo a lei brasileira, os herdeiros de um escritor detêm plenos direitos sobre sua obra apenas nos 70 anos que se seguem à sua morte. 

Tudo liberado

Como o homem que escreveu “Vidas secas” morreu em 1953, desde 1º de janeiro qualquer pessoa tem direito de imprimir e vender a sua própria edição de uma das obras-primas da segunda geração do modernismo brasileiro. Ou qualquer outro texto da lavra de Graciliano. 

“Os filhos da coruja”, de 1923, sai pela primeira vez em livro pela infantojuvenil Baião, braço da editora Todavia, que convidou o pesquisador Thiago Mio Salla para coordenar um projeto de publicações do autor, que inclui romances e seleção de cartas com mais material inédito. 

“Graciliano é um autor com representatividade tanto literária quanto comercial, e do ponto de vista intelectual, o domínio público abre possibilidades para que a obra seja editada de outras perspectivas, que agreguem novas leituras”, afirma o organizador. 

A intenção de seu projeto, diz, é investir em edições críticas cotejando diferentes versões dos textos, oferecer em cada livro um panorama sistêmico da obra completa do autor e selecionar rodapés de autores de ponta como Antonio Candido, outro nome editado pela casa. E, sim, publicar material que Graciliano rejeitava, por entender que “o interesse pela obra do Graciliano é muito grande”. 

“Ele queria manter imagem uniforme, sim, mas o que se construiu dele após a morte foi maior do que talvez ele mesmo imaginasse. Estamos falando de um dos maiores autores da literatura brasileira”, argumenta. 

Segundo a editora Stéphanie Roque, da Companhia das Letras, as oportunidades abertas pelo domínio público tornam a obra do alagoano democrática e acessível, algo que agradaria ao próprio autor. 


“Graciliano era um revisor muito rígido da língua, e tinha o mesmo rigor ético com suas personagens tão marcantes socialmente, de fora do eixo sudestino. São livros que vão reviver com novas leituras neste nosso contexto de pensar identidades”, diz.

 


Por meio do selo Penguin-Companhia, a casa publica a trinca de seus principais romances: “Angústia”, “São Bernardo” e “Vidas secas” – que outras editoras especializadas em trabalhar domínio público, como a Antofágica e o Clube de Literatura Clássica, também têm no prelo.

 

Martins e Record


A divulgação mais ampla do autor, que era sucesso de crítica mas tinha público restrito em vida, começou com a editora Martins na década de 1960 e se consolidou na Record, que o edita desde 1975 e foi responsável pela comercialização de cerca de 2 milhões de cópias de “Vidas secas” até aqui.

 


Thiago Mio Salla está acostumado a vasculhar fontes primárias para descobrir novos textos do punho do Velho Graça desde os dois doutorados sobre sua obra que concluiu na Universidade de São Paulo.

 

Uma das culminações desse trabalho foi “Garranchos”, reunião de 80 textos (até então inéditos, alguns sob pseudônimo) da inesgotável produção de imprensa do alagoano. Foi um trabalho feito junto à família do autor, que Mio Salla saúda como “sempre aberta e receptiva”, e publicado há 12 anos pela Record.

 


A casa onde Graciliano fez morada, aliás, não tem planos de parar de editar seus textos nem de romper seu contrato com a família Ramos, que vigora até 2029. A decisão de fechar um acordo para além do domínio público, em 2018, foi para honrar a parceria de décadas com os herdeiros, informa o diretor editorial Cassiano Elek Machado.

 

“É natural que agora venham dezenas de outras edições e percamos um pouco a performance com o autor, mas estamos tranquilos com a qualidade e a amplitude do nosso catálogo”, afirma ele.

 

Box de luxo e livro de bolso


A Record põe suas fichas, este ano, “tanto em trunfos premium como econômicos”, segundo o editor. Primeiro, um box caprichado com os três romances mais consagrados do autor, depois, uma versão de bolso de “Vidas secas”. E enfim, o volume “Prefeito escritor”, com os relatórios de quando, em sua vida pregressa ao sucesso literário, ele foi eleito para gerir a cidade de Palmeira dos Índios.

 


A editora continuará pagando direitos autorais à família por mais cinco anos, ao menos, agora com uma diferença relevante. Por iniciativa dos herdeiros, que criaram o Instituto Graciliano Ramos, parte do dinheiro vai para o Innocence Project Brasil, organização que atua em prol de pessoas encarceradas injustamente, assim como aconteceu com o autor durante o Estado Novo, como sabe quem leu as “Memórias do cárcere”.

 

Direitos autorais


O neto que defende seu legado com tanto empenho, Ricardo Ramos Filho, nasceu apenas 10 meses após a morte do avô e seguiu seus passos tanto nos posicionamentos firmes quanto na profissão. Não só abraçou a literatura como se tornou presidente, recém-reeleito, da União Brasileira de Escritores. É alguém que entende do riscado e, nos últimos anos, procurou parlamentares de esquerda no Congresso para tentar mudar a lei que rege o domínio público. Não conseguiu.

 


Ele afirma, de pronto e com serenidade, ser “totalmente favorável” a disponibilizar publicamente a obra de Graciliano de graça a quem quiser ler. “Isso poderia ter acontecido até antes. A excrescência dessa lei é poder haver a comercialização da obra sem pagar nenhum direito autoral. E com o agravante de que muitos vão se aproveitar para publicar sem o menor cuidado.”

 


É algo irônico que “Os filhos da coruja” gire em torno do medo de ter seus descendentes devorados – sentimento que, segundo a fortuna crítica da obra, tomava àquela altura o viúvo Graciliano, responsável sozinho por quatro rebentos. Como podemos ver, as leis da natureza são mesmo implacáveis.

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