Diz a canção que o ciúme é o perfume do amor. Nada mais equivocado e descabido, de acordo com Carla Camurati, diretora de “Carlota Joaquina – Princesa do Brazil”, marco da retomada do cinema nacional em 1995. Ela mostra isso em “Confessionário”, curta produzido no ano passado para o projeto Teatro em Movimento Digital. O filme está disponível gratuitamente no site do projeto até o dia 25 de janeiro.
Em “Confessionário”, o espectador é apresentado ao casal Guta (Bel Kutner) e Leo (Eriberto Leão). Os dois se conheceram por meio de um aplicativo, começaram a conversar como qualquer casal e engataram um namoro. Leo se mostra atencioso, amoroso e dedicado. Guta é carinhosa, responsável, madura e inteligente.
Com o passar do tempo, Leo vai dando indícios de sua verdadeira personalidade. Começa demonstrando sutis incômodos quando o telefone da namorada toca e, rapidamente, passa a monitorar cada passo dela. Tudo vira motivo de desconfiança. Aos poucos, o homem sedutor, atencioso e amoroso vai se mostrando imaturo, machista e inseguro.
“Quem nunca teve, né, uma relação cheia de passionalidade?”, diz Guta. “Eu já me vi tendo muito prazer, me sentindo toda especial, desejada, depois de uma boa cena, uma boa briga por ciúme. Que loucura! Isso acaba virando a dinâmica da relação, a gente começa a precisar disso. Isso vira o motor do tesão, da paixão. Só que a mesma coisa que estimula é o que envenena e destrói tudo”, pondera a personagem, prevendo o desfecho do namoro.
Como esperado, Leo passa a se comportar de maneira violenta. Humilha Guta, agride-a e chega ao ponto de trancá-la em casa para que não o abandone.
Manifesto feminista
“Fiz este filme com a intensidade que eu sinto. Quase como se fosse um manifesto sobre o direito da mulher de existir, ter a própria personalidade, ser aceita e não precisar ser violentada, calada e abusada”, diz Carla Camurati, que assina o roteiro em parceria com Márcia Zanelatto.
“Com essa relação de feminicídios, estupros e abusos, comecei a pensar em como nasce a violência. Qual o embrião disso? O embrião está no patriarcado, na relação de posse que o homem tem com a mulher”, acrescenta.
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Não foi difícil construir o personagem de Eriberto Leão. “Já vimos muitos homens e casos assim. São pessoas que se escondem atrás de um disfarce. É uma coisa dissimulada”, comenta a diretora.
Se construir Leo não foi difícil, o mesmo não se pode dizer de interpretá-lo. Eriberto conseguiu dar vida ao personagem torpe e repugnante de maneira magistral, com verdade e credibilidade dignas de nota. Mas penou para fazer isso. “Ele passou um pouco de mal, coitado”, lembra Camurati.
O clima no set não era dos mais leves. Havia intensidade, principalmente durante as cenas de briga e no lance final, quando Guta e Leo ficam sob a mira de um revólver.
Camurati não abriu mão da densidade em nenhum momento. Seu objetivo era chamar a atenção para que as pessoas compreendam que o machismo propõe um jogo cruel de poder e dominação entre homens e mulheres. E, ao mesmo tempo, percebam que esse jogo não precisa mais ser jogado.
Obra de ficção
Houve cuidado para não transformar o curta em relato documental, individualizado. “Confessionário” é obra de ficção, ainda que a história seja muito parecida com a de muitas mulheres. Mais de 25,4 milhões de brasileiras já sofreram violência doméstica, segundo o DataSenado.
Mesmo assim, a diretora optou por inserir cenas vindas de câmeras de segurança mostrando o crime de violência contra a mulher sendo cometido. O compilado macabro, reproduzido no fim do filme, dá a dimensão real do que a ficção ilustrou.
“A ficção esquenta a dramaturgia que a gente vai ver na realidade, que são as cenas das câmeras de segurança”, diz Camurati. “São cenas terríveis, sim, mas achamos importante tê-las no filme porque esses casos chegam para a gente em forma de matéria jornalística e estatística. Quando vemos acontecendo de verdade, nossa resposta é outra”, conclui.
"Quando a noite chegar"
Outro filme disponível gratuitamente no site do Teatro em Movimento Digital é “Quando a noite chegar”, de Carlos Gradim. Estrelado por Teuda Bara, atriz do Grupo Galpão, o curta nasceu da peça homônima de Gradim que estreou em 2023.
Os atores Babi Amaral e Alexandre Cioletti interpretam o casal de irmãos que lida com a dor de se despedir da mãe, papel de Teuda. Conforme a morte se aproxima, lembranças e sentimentos carinhosos são trazidos à tona.
“CONFESSIONÁRIO”
Brasil, 2023, 28 min. Direção de Carla Camurati, com Bel Kutner e Eriberto Leão. Filme disponível até 25 de janeiro no site teatroemmovimento.com.br