O diretor e roteirista carioca Pedro Freire faz sua estreia em longa-metragem com uma história sobre sua mãe, a atriz Malu Rocha, mas o resultado vai além da narrativa tradicional de amor maternal.

 


“Ela era uma mãe difícil pra caramba, não era fácil conviver com ela”, lembra Freire, que está em Park City, em Utah, para apresentar “Malu” no Festival Sundance, o mais importante evento do cinema independente nos EUA. “Ao mesmo tempo, ela foi a figura mais influente da minha vida num lugar artístico e intelectual, algo que nem toda mãe é.”

 


O filme é o único longa brasileiro em competição em Sundance, ao lado de dois curtas nacionais, “Boi de Conchas” e a animação “Dona Beatriz Nsimba Vita”.

 



 


Em “Malu”, Freire segue três gerações de mulheres, na casa de uma favela do Rio de Janeiro. Malu, vivida por Yara de Novaes, é uma atriz desempregada que adora maconha, para o horror da mãe carola, Lili, papel de Juliana Carneiro da Cunha. As duas recebem Joana, interpretada por Carol Duarte, filha, neta e jovem atriz, que chega para visitar a dupla após uma temporada de estudos na França.

 


O carinho da saudade é contagiante, mas logo dá lugar ao embate virulento, aprofundado por um ciclo de traumas que cada geração parece herdar. Apesar de a personagem de Joana ser fictícia, as histórias são baseadas na vivência de Freire e de sua irmã mais velha, Isadora.

 

Curta "Dona Beatriz Nsimba Vita" conta história com cenas em BH

Motrix Produções/divulgação

 

Teatro Oficina e TV Globo

 

Malu começou a carreira no Teatro Oficina, fez peças de teatro, filmes e novelas da Globo. No filme de Freire, a protagonista relembra quando foi presa com Plínio Marcos na ditadura e sua estreia no musical “Hair”, substituindo Sonia Braga, dopada por causa da mãe, que lhe havia internado num manicômio horas antes do espetáculo.

 


Ela morreu em 2013, aos 65 anos, devido a uma doença que atinge o sistema nervoso. O pai de Freire é o ator Herson Capri, com quem Malu foi casada até 1989.

 


“Malu”, que deve estrear no Brasil em novembro, é um filme intensamente feminino, universo no qual Freire cresceu. “Minha mãe era a protagonista absoluta daquele coletivo que era a nossa família. Puxava pra si a atenção o tempo todo, estava sempre no palco. A gente acordava, e lá estava Malu protagonizando o café da manhã”, lembra.

 


“Eu era a mosquinha na parede da minha própria casa com essas três mulheres incríveis, maravilhosas, loucas e difíceis.”

 


Com 25 anos de carreira em audiovisual, Freire trabalhou em 17 filmes como preparador de elenco, roteirista e assistente de direção, além de dar aulas de direção de atores na Escola de Cinema de Cuba desde 2017. Também dirigiu novelas da Globo e curtas que rodaram festivais internacionais.
Para criar o roteiro, não faltaram lágrimas. “Escrevia e chorava, às vezes de soluçar”, disse. “Foi difícil e também maravilhoso. Valeu anos de terapia.”

 

 

Surrealismo brasileiro

 

Os curtas em competição trazem narrativas mais surrealistas, ainda que calcadas na realidade.
A animação mineira “Dona Beatriz Nsimba Vita”, com roteiro, desenhos e direção do mineiro Leonardo Cata Preta, é inspirada na heroína congolesa do século 17, assassinada pela Igreja Católica durante as missões coloniais portuguesas.

 


No filme, ela reaparece em Belo Horizonte, engajada na missão divina de recriar seu próprio povo produzindo clones de si mesma. Os desenhos são delicados, apesar da violência de certas imagens, em linhas finas que parecem feitas à mão com canetinha Bic azul e vermelha.

 


“Nsimba Vita é um dos muitos personagens históricos que têm muito mais a nos dizer, enquanto brasileiros, do que muitos bandeirantes ou senhores de capitanias”, disse o diretor, conhecido como Catapreta, que também trabalha como artista plástico.

 


“Milhões de escravizados que viveram e morreram no Brasil eram seus conterrâneos e contemporâneos. Ela foi uma figura de resistência durante o processo colonial português na região do Congo e, por consequência, uma referência heroica para muitas dessas pessoas trazidas à força para o Brasil.”

 

O curta "Boi de conchas" foi gravado em Ubatuba, no litoral paulista

Reprodução

 

Metáfora pós-pandêmica

 

O segundo curta brasileiro em exibição é “Boi de conchas”, do diretor e roteirista Daniel Barosa (do longa “Boni Bonita”). O filme foi gravado em Bertioga, litoral paulista, baseado numa lenda local sobre o boi que foge do abatedouro e conhece o oceano, voltando coberto de conchas nas noites de lua cheia para passear na praia.

 


Na história, bois misteriosos aparecem na cidade ao mesmo tempo em que adolescentes começam a desaparecer, como a irmã da protagonista Rayane (Bebé Salvego). Ela mora com os pais e ajuda na peixaria da família, enquanto procura colegas para formar uma banda de heavy metal.

 


“A lenda tem a metáfora bonita de que você pode mudar seu destino, pode fugir de ambientes tóxicos”, disse Barosa, que escreveu o roteiro durante a pandemia. “Tem também muito do mundo pós-pandêmico, da depressão e da perda.”

 


Ainda que os bois possam lembrar a polarização política atual do país, o produtor Nikolas Maciel aponta outra metáfora, a completa falta de perspectiva de futuro da juventude. “A fábula se encaixou na visão de tentar mudar esse destino porque, de certa forma, estamos indo para o abatedouro”, disse Maciel. (Fernanda Ezabella – Folhapress)

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