Torcida homenageia meninos mortos durante incêndio no alojamento do Flamengo em fevereiro de 2019 -  (crédito:  Mauro Pimentel/AFP)

Torcida homenageia meninos mortos durante incêndio no alojamento do Flamengo em fevereiro de 2019

crédito: Mauro Pimentel/AFP

Com pouco mais de 1,5 metro, Gedson Beltrão dos Santos Corgosinho, o Gedinho, foi um dos melhores jogadores que já passaram pelo Trieste Futebol Clube, de Curitiba. Devido à habilidade com o pé esquerdo, chegou a ser apelidado de “Mini Messi” e até de “Novo Messi”. 

Em homenagem a outro boleiro argentino, o ex-meia e atual presidente do Boca Juniors, Juan Román Riquelme, Rosana de Souza e José Lopes Viana escolheram batizar seu segundo filho de Rykelmo de Souza Viana. Foi sob o nome de outro país que o jovem, natural de Limeira, no interior paulista, acabou mais conhecido, no entanto: Bolívia. 

As histórias dos dois atletas mortos precocemente, aos 14 e 16 anos, respectivamente, são contadas no livro recém-lançado pela jornalista Daniela Arbex, assim como as dos outros oito jogadores de categorias de base do Flamengo que perderam a vida em um incêndio no alojamento do clube cinco anos atrás. 

Resultado de apuração de dois anos que envolveu quase 10 mil páginas de documentos e cerca de 150 entrevistas, “Longe do ninho” (Intrínseca) revela informações que até então eram desconhecidas pelas famílias que perderam filhos, irmãos, sobrinhos e netos na tragédia ocorrida em 8 de fevereiro de 2019 no Ninho do Urubu. 

“Órfãos de filhos”

Uma das mais dolorosas é que, diferentemente do que esses familiares pensavam, os jovens atletas não morreram naquela madrugada enquanto dormiam, intoxicados pela fumaça. Morreram lutando, e não só pelas próprias vidas, mas para salvar os 14 amigos com quem dividiam os contêineres de janelas gradeadas, com uma única porta de saída. 

Arbex diz que contar aos pais a verdade sobre como se deu a morte dos filhos foi o momento mais difícil da produção do livro. “Eles simbolizavam a esperança no futuro, e ninguém está preparado para enterrar o futuro.” 

Aqueles que ficaram, os “órfãos de filhos”, também são retratados nas páginas do livro. Ali, estão a dor de ver a própria cria ir embora atrás de um sonho; a culpa por estar longe quando o fogo se alastrou; a sensação dilacerante da mãe que enterra o filho no dia em que ele completaria 15 anos.

 

Torcedora do Flamengo com o rosto pintado de preto, com a palavra luto escrita em vermelho

Torcedora no jogo entre Flamengo e Fluminense, no Maracanã, seis dias após a tragédia no Ninho do Urubu

Mauro Pimentel/AFP

 

Embora estatísticas apontem a baixa probabilidade de aspirantes a craque virarem um novo Zico, naquela sexta-feira trágica não foi a seleção brasileira que ficou sem seu próximo camisa 10, mas Rosanas, Marias, Darleis e tantos outros que perderam pedaços de si mesmos. 

Apesar de doloroso, o relato é inspirador ao mostrar a coragem dos garotos ao enfrentarem as chamas sob a temperatura que alcançou 600°C. Ao mesmo tempo, provoca um sentimento de revolta em razão da extrema lentidão do Judiciário para julgar o caso e da ausência de prestação de contas. 

Passados cinco anos desde o incêndio no CT (Centro de Treinamento) do Flamengo, até hoje ninguém foi devidamente responsabilizado pelo incidente – sejam os agentes públicos que deveriam ter fiscalizado as condições de alojamento oferecidas pelo clube, sejam os dirigentes do Flamengo que, alertados desde 2012 sobre a falta de segurança das instalações, não adotaram medidas para resolver a situação. 

“As grandes tragédias mostram que a cultura da impunidade está muito presente e alimenta o próximo evento”, afirma Arbex.
A jornalista, que também publicou livros sobre o incêndio na Boate Kiss e o desastre de Brumadinho, conta que por trás das histórias carregadas de emoção está o desejo de jogar luz sobre episódios que muitas vezes acabam caindo no esquecimento. 

“Esquecer é negar a história. Se esquecemos, cometemos os mesmos erros do passado que fizeram com que chegássemos até aqui.” 

O livro aponta que o Flamengo gastou com a indenização às famílias dos mortos menos de 3% dos R$ 800 milhões investidos em seu elenco principal desde o episódio. O clube, que começou a dispensar sobreviventes do incêndio dois anos depois do ocorrido, não quis comentá-lo para a obra que retrata o capítulo mais triste de sua história centenária. 

“Longe do ninho” é leitura difícil, sujeita a interrupções devido à alta carga emocional. Mas também é necessária, em especial para que o descaso que permite a tragédias como esta acontecerem não seja jogado para debaixo do tapete por troféus levantados dentro de campo. (Lucas Bombana

“LONGE DO NINHO”


• De Daniela Arbex
• Editora Intrínseca
• 304 páginas
• R$ 69,90
• R$ 34,90 (e-book)