Integrantes da Trupe Garnizé, os atores foram convidados pelo diretor Eid Ribeiro para 
a peça, cuja dramaturgia se adapta às limitações impostas a Francisco por dois AVCs -  (crédito: André Veloso/Divulgação)

Integrantes da Trupe Garnizé, os atores foram convidados pelo diretor Eid Ribeiro para a peça, cuja dramaturgia se adapta às limitações impostas a Francisco por dois AVCs

crédito: André Veloso/Divulgação

No camarim, pai e filho ajeitam os últimos detalhes antes de entrar em cena. Victor Dhornelas, o filho, de 27 anos, já com a maquiagem de palhaço, pinta delicadamente o rosto do pai, Francisco Dornellas, de 78.

Trata-se de uma cena de bastidores que se repetirá ao longo de, no mínimo, quatro meses, período em que os dois ficarão em cartaz com “Fim de partida”, texto do irlandês Samuel Beckett (1906-1989) com direção do mineiro Eid Ribeiro, no circuito do CCBB (Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo).

Por causa de dois AVCs que sofreu recentemente, Francisco ficou com a coordenação motora e habilidades cognitivas comprometidas. “Ele (o AVC) troca a polaridade do nosso cérebro. Troca o lado direito, que é objetivo e pragmático, com o lado esquerdo, que é sensível e subjetivo. Eu já não consigo fazer quase nada com a mão direita”, conta Francisco.

“Por isso a necessidade de maquiá-lo”, complementa Victor.

A dupla recebe o Estado de Minas no palco do Teatro II do CCBB-BH, onde se apresenta de sexta a segunda-feira, até 18 de março. Local sugestivo, aliás, para conversar sobre a relação entre pai e filho, e a montagem do texto de Beckett que os dois protagonizam.


Relações familiares

Na peça, Francisco é Hamm, e Victor é Clov, dois palhaços fechados em um bunker num contexto de fim de mundo. Ainda que não sejam ligados por laços sanguíneos, existe uma relação familiar entre eles.

"Eu tenho esse sentimento de querer sair, ir para o Rio de Janeiro ou São Paulo, mas fico aqui. Não adianta eu querer ir embora, se não for honrar essa herança de sensibilidade e humanidade que ele me deixou. Se estou aqui hoje, sendo palhaço e ator, devo isso ao meu pai”

Victor Dhornelas, ator e palhaço

Hamm é um idoso dependente dos cuidados de Clov, que, a todo momento, aventa a possibilidade de deixá-lo, a fim de seguir sua própria vida, mas não o faz, tomado por um sentimento de dever para com quem o criou. Por vezes, Clov chega a pegar sua mala e ir até a porta do bunker, mas não consegue ultrapassá-la.

“Há ali uma relação ficcional que tem também uma dimensão documental”, destaca Victor. “Porque é isso, eu tenho um pai idoso, de quase 80 anos, que não consegue desenvolver muito bem a arte e as coisas dele sem eu estar ali junto. Eu tenho esse sentimento de querer sair, ir para o Rio de Janeiro ou São Paulo, mas fico aqui. Não adianta eu querer ir embora, se não for honrar essa herança de sensibilidade e humanidade que ele me deixou. Se estou aqui hoje, sendo palhaço e ator, devo isso ao meu pai”.


Não há rancor na fala do artista. Pelo contrário, o sentimento é de reconhecimento e gratidão. Victor, afinal, estreou nas artes cênicas aos 7 anos, acompanhando o pai e o irmão mais velho, Daniel Dornellas, de 29, em espetáculos de palhaçaria que apresentavam nas ruas de Belo Horizonte. O trio formava a Trupe Garnizé.

Primeiro AVC

Com o primeiro AVC de Francisco, há aproximadamente oito anos, os três resolveram dar uma pausa nas apresentações. Somadas às dificuldades do pai em se expressar de maneira corporal e também pela fala (com a memória comprometida, Francisco não consegue decorar textos longos), estavam ainda a falta de familiaridade do trio com editais da prefeitura e com a Lei Federal de Incentivo à Cultura. O dinheiro da trupe vinha unicamente das doações que recebiam do público ao passarem o chapéu no fim de cada apresentação.

Além desses empecilhos, Francisco enfrentou uma profunda depressão. Não queria mais escrever nem se apresentar, mesmo quando convidado a fazer participações pontuais em espetáculos. Em determinada ocasião, Eid Ribeiro sugeriu que Francisco gravasse o trecho de um texto que seria reproduzido em uma das peças do diretor, como sendo a fala de um homem em delírio. Francisco, contudo, declinou do convite.

Victor e Daniel é que seguravam as pontas para animar o pai e tentar, de alguma forma, fazê-lo voltar aos palcos. O retorno ocorreu em 2022, quando a Trupe Garnizé encenou o espetáculo “Ligados em uma nota sol”. Foi por causa dessa peça, aliás, que Eid Ribeiro convidou Francisco e Victor para montarem “Fim de partida”.


Sofrimento e ironia

No palco, Francisco fica quase o tempo todo sentado em uma cadeira de rodas, com um tablet à sua frente, no qual está o roteiro. Suas falas, quase sempre, são lidas e, eventualmente, quando se perde ao ter que passar as páginas no aparelho digital, é Victor, sem sair do personagem Clov, que lhe ajuda com o aparato tecnológico.

“Pode haver miséria mais sublime que a minha?", questiona o personagem de Francisco, numa queixa que poderia muito bem ser a do próprio ator. Contudo, conforme garantem pai e filho, a depressão já está superada.

“Foi muito bom ele interpretar o Hamm depois de já ter superado a doença, porque ele consegue dar um outro tom para a condição do personagem, um tom mais irônico para o sofrimento. Ele ironiza, consegue trazer um outro lugar para aquele sentimento”, diz Victor.

Para o futuro, o plano da família é voltar a montar espetáculos com a Trupe Garnizé, logo que termine a turnê de “Fim de partida”. “Só não vamos fazer isso agora porque seria muito desgastante”, diz Victor.

“Para se ter uma ideia, olha só (pega o celular para ver as horas), são cinco horas da tarde. A peça começa às sete da noite, mas ensaiamos pela manhã e já vamos começar a nos preparar agora. Só vamos embora só lá pelas 22h. Não daríamos conta de conciliar com outro espetáculo”, comenta.

Fim de papo, a dupla agradece a reportagem, volta para o camarim e repete o roteiro não escrito de sempre: Victor, já com a maquiagem e o figurino de palhaço, começa a pintar delicadamente o rosto do pai.


“FIM DE PARTIDA”
De Samuel Beckett. Direção: Eid Ribeiro. Com Francisco Dornellas, Victor Dhornelas, João Santos e Marina Viana. Em cartaz até 18 de março, de sexta a segunda, sempre às 19h, no Teatro II do CCBB-BH (Praça da Liberdade, 450, Funcionários). Ingressos à venda por R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia), no site do CCBB e na bilheteria do teatro. Duração: 135 minutos, com 10 minutos de intervalo. Classificação indicativa: 16 anos. Informações: (31) 3431-9400.