Samanta Schweblin diz que a atenção, em seus textos, se aproxima da experiência mística -  (crédito: Alejandra López/divulgação)

Samanta Schweblin diz que a atenção, em seus textos, se aproxima da experiência mística

crédito: Alejandra López/divulgação

Alguma coisa aconteceu com Amanda. Nem ela nem nós sabemos o que é. Sabemos apenas que a mulher, meio grogue, conversa com um interlocutor misterioso que a obriga a procurar “o que é importante”, ou seja, o ponto exato em que sua vida degringolou e tomou um rumo fatal. 

No tenso relato de “Distância de resgate”, a argentina Samanta Schweblin mantém seus leitores o tempo todo no fio da navalha. 

É um romance de leitura voraz, em que acompanhamos por 100 páginas a protagonista buscando entender, sôfrega, que diabo está havendo. 

A escrita febril tem feito de Schweblin, de 45 anos, uma das mais premiadas autoras de seu país. Esta novela curtinha foi finalista do prêmio Booker Internacional. Como a autora obtém esse efeito é, portanto, algo que merece ser escrutinado. 

“Eu me aborreço muito fácil como leitora e também me encho da minha própria escrita”, conta ela, com bom humor, durante entrevista por vídeo. “Isso exige que eu avance em direção às minhas intuições, mas também brigue com elas, contra os meus lugares-comuns. Gosto de pensar detalhadamente no que ocorre entre uma palavra e outra, entre uma oração e a próxima.” 

Sutil maquinaria

Samanta diz que o livro é sempre mais inteligente que seu escritor. “O autor pode construir a maquinaria que quiser, mas não pode pisar no pé do outro. Aquilo que ele diz é acompanhado do pensamento do leitor, mas o texto não deve dizer esse pensamento. Há coisas que acontecem na página e outras que acontecem na cabeça de quem lê, e as duas não devem pisar uma na outra. Você tem que abrir espaço ao outro, se não, dança sozinha.” 

A editora Fósforo publica agora a edição de “Distância de resgate” com nova tradução de Joca Reiners Terron. A anterior, da Record, saiu no país pouco tempo depois do lançamento, há 10 anos. 

Também estão no catálogo da editora o romance “Kentukis”, uma espécie de distopia que mostra a relação de pessoas solitárias com bichinhos fofos que funcionam como avatares macabros, e a coletânea de contos reunindo “Pássaros na boca” e “Sete casas vazias”. 

O primeiro foi responsável por dar à autora o prestigioso prêmio Casa de las Américas, em 2008; e o segundo tornou Schweblin a primeira escritora argentina desde Julio Cortázar a vencer o americano National Book Award, há dois anos. 

Neles, há histórias como a do aprendiz de matador de aluguel obrigado a cortar um coração em um teste; da menina prestes a ser sequestrada por um pedófilo que a convida para comprar calcinhas, em relato do ponto de vista dessa garota; e do marido que comete feminicídio e vê, pasmo, o corpo destroçado da mulher se tornar peça festejada em museus de arte. 

As tramas são sucintas: Schweblin não gosta de se demorar. Se faz um plano para uma história de 60 páginas, tende a terminar com 20 no papel e 40 na lixeira. Todas perturbadoras. A autora não rejeita o rótulo de terror para suas narrativas, mas diz não trabalhar dentro de normas de gênero. 

“Ao ler livros policiais, de ficção científica, por exemplo, há uma série de leis internas que regem a experiência de acompanhar o herói. O espaço do insólito tem muito menos regras. Você (o leitor) não sabe se é para (o personagem) sair correndo porque ali tem um monstro, ou se pode ficar tranquilo porque está tudo na sua cabeça.” 

A iminência do horror

A escritora afirma se interessar “muitíssimo pela iminência, o momento prévio ao horror”. Conta ficar fascinada pela paralisia de quando se está absolutamente apavorado, que demole qualquer preconceito ou regra de convívio. É quando você deixa de ter juízo, diz ela. 

Em “Distância de resgate”, aos poucos se esclarece a narrativa que envolve Amanda, a amiga com quem passa férias e os filhos de ambas – acossados por uma ameaça invisível, talvez sobrenatural. 

O título faz referência à maternidade. “Quando temos filhos, podemos estar papeando com um amigo tomando sol, mas no fundo toda a nossa atenção está neles. Estamos o tempo todo medindo os cenários possíveis: se a menina cai no fundo da piscina, quantos segundos eu levo para correr até ela?”, observa. 

É um prato cheio para qualquer suspense: o estado de constante alerta, o medo incessante e quase paranoico de que algum mal desconhecido venha a se abater sobre os filhos e a família. 

Conversando confusa com seu interlocutor enquanto tenta juntar as peças da memória, Amanda volta sempre a uma pergunta irremediável: “Onde está minha filha, o que aconteceu com Nina?”. 

Quanto mais tempo passa, maior a aflição, também da personagem e dos leitores. “O nível de atenção em situações assim me fascina, porque põe o leitor no lugar de querer apenas entender”, alegra-se. “É um momento de atenção máxima que, para mim, se aproxima da experiência mística. Quase religiosa.” 

“DISTÂNCIA DE RESGATE”


• De Samanta Schweblin
• Tradução: Joca Reiners Terron
• Editora Fósforo
• 96 págs
• R$ 64,90 e R$ 44,90 (e-book)