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Em "Levante", a mineira Grace Passô é técnica de Ayomi Domenica (Sophia, à dir.); longa ganhou vários prêmios internacionais

crédito: Wilssa Esser/Divulgação

“Não é um longa-metragem. É uma eterna-metragem”, brinca a cineasta Lillah Halla sobre seu mais recente filme, “Levante”, em cartaz no UNA Cine Belas Artes a partir desta quinta-feira (22/2). Lillah não se refere os 90 minutos de duração do longa, mas ao período decorrido desde a concepção da obra até o lançamento.


Desde meados de 2015, quando ela começou a trabalhar no roteiro junto com a escritora venezuelana María Elena Morán, muita coisa aconteceu. Os recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que seriam destinados à produção, foram congelados; o Brasil mergulhou em uma onda reacionária e houve desmantelamento das políticas culturais no país.

 


“Quando o fundo foi congelado, tivemos que abrir para coproduções internacionais para conseguirmos desenvolver. Foram várias pessoas, vários países envolvidos. Foi realmente um quebra-cabeça conseguir levantar esse filme nesse momento”, conta Lillah.


Além disso, nessa mesma época, o Uruguai comemorava três anos vigência da legalização do aborto. O dispositivo legal autorizando a interrupção da gravidez foi implementado em 2012 e, em 2015, já havia contribuído para a queda da mortalidade de mulheres que passaram pelo procedimento. O tema aborto, aliás, é o mote de “Levante”.

 


CLÍNICA CLANDESTINA

 

Vencedor de seis prêmios internacionais, entre eles o do júri jovem do Festival de Roterdã deste ano, o filme acompanha Sofia (personagem de Ayomi Domenica), adolescente promissora no vôlei que está prestes a ganhar uma bolsa para jogar no Chile, mas vê seu sonho interrompido por uma gravidez indesejada.


Decidida a não continuar com a gestação, Sofia procura métodos abortivos e até uma clínica clandestina, onde é desencorajada pela própria equipe médica que realiza o procedimento à margem da lei. Sem ter a quem recorrer, e com a data da viagem para o Chile próxima, ela abre o jogo com o pai, João (personagem de Rômulo Braga), pedindo que ele a leve até o Uruguai para abortar.


Sofia não tem mais ninguém a recorrer. A mãe, nascida no país vizinho, morreu quando ela ainda era criança e não se tem notícias sobre a família, dos lados paterno e materno. Ao contrário do que seria esperado pelo senso comum, João, depois de um primeiro acesso de raiva pela notícia dada pela filha, apoia a garota e a acompanha até o Uruguai. No entanto, burocracias do país vizinho impedem que ela realize o aborto.


LINCHAMENTO

 

João e Sofia voltam para o Brasil e, quando chegam, os vizinhos já estão sabendo das intenções dos dois. Na surdina, dão início a uma série de ataques à família. Num dos episódios mais violentos, a casa onde pai e filha moram é apedrejada e o muro pichado com um versículo bíblico fora de contexto: “O salário do pecado é a morte” (Rom, 6-23).


A dupla não se intimida. Continua vivendo suas vidas pensando na solução que pode dar àquela gravidez indesejada. Contudo, num dos dias de jogo de Sofia, uma das torcidas, recheada de fanáticos religiosos, invade a quadra, promovendo um linchamento contra a garota.


“Todo esse filme foi feito com muita minúcia, muita escuta e muita pesquisa”, conta Lillah. “Tem ali o vôlei como estratégia coletiva e o ‘Levante’, que dá nome ao filme, como essa ideia de levantar a bola ao mesmo tempo em que pode ser interpretado como a importância da não submissão ao que nos é imposto de maneira autoritária.”


Lillah, María Elena Morán, a roteirista, e todo o restante do elenco têm perfeita dimensão do quanto o tema do filme é espinhoso. Nesse contexto, possíveis boicotes e retaliações à produção não seriam surpresa.


“Desde o início, a gente pensou nisso”, comenta Ayomi Domenica, que interpreta Sofia. “O filme foi gravado num momento superviolento dessa onda reacionária. E vimos que, quando alguma coisa dele saía nas redes sociais, havia muitos comentários de ódio. Mas a gente se preparou para isso. Estamos acostumados – embora eu não acredite que ‘acostumar’ seja a palavra adequada, porque não se acostuma com a violência –, com esse tipo de comportamento”, ressalta.


Ayomi Domenica continua: “Ao mesmo tempo, temos muita convicção do que estamos fazendo e da importância disso. Assim, qualquer onda contrária não vai fazer com que a gente se abale na nossa expectativa de fazer com que o máximo de pessoas vejam o filme e que esse assunto, o aborto, seja debatido. Queremos que ele esteja na mesa de jantar das famílias – mesmo que seja para criticar –, que seja discutido e que a palavra aborto seja dita à luz do dia entre adolescentes, jovens, adultos e idosos”.


ELENCO MINEIRO

 

Grande parte do elenco de “Levante” é de Minas, embora o longa tenha sido rodado em São Paulo e contado com apoio da Prefeitura do Rio de Janeiro. Estão em cena Rômulo Braga, Grace Passô (que interpreta Sol, a treinadora de Sofia), Gláucia Vandeveld e Zora Santos. No fim, o filme conta ainda com participação de Rejane Faria. “Eu mesma sou mineira fajuta”, brinca Lillah, lembrando que nasceu na cidade paulista de Vargem Grande do Sul, a quase 20 km de Minas. “Mas, falando sério sobre essa parte mineira do elenco, acho que, além do profissionalismo absoluto, tem algo na maneira deles de fazer cinema. São pessoas que vieram do teatro, do lugar da experimentação, de colocar o corpo em jogo e de pensar junto. Também são todos atores e autores. Isso foi muito importante para a gente”.


“LEVANTE”
Brasil, 2023, 99min. Direção de Lillah Halla. Com Ayomi Domenica, Rômulo Braga e Grace Passô. Em cartaz no UNA Cine Belas Artes 3 (Rua Gonçalves Dias, 1.581 – Lourdes), às 18h40. Classificação: 16 anos.