"Escrever é dar movimento à dança-canto que meu corpo não executa. A poesia é a senha que invento para poder acessar o mundo." A sentença é da escritora mineira Conceição Evaristo, cuja obra tem como marcas o protagonismo feminino e a denúncia de discriminação racial.
O trabalho de Evaristo, eleita neste mês imortal pela Academia Mineira de Letras, é objeto da tese "O fio bordado da Escrevivência: A palavra-gesto como rota de cura em Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo", que deu o título de mestre em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a artista têxtil, pesquisadora e jornalista sergipana Blenda Souto Maior, de 37 anos.
Orientada por Marília Librandi Rocha e inspirada pela singularidade da construção literária de Conceição Evaristo, Blenda expande a pesquisa sobre a literatura de autoria negra, especialmente a feminina.
Desde 2019, Blenda coordena o projeto Ponto em Verso, que une a literatura com o bordado. "Chamo o Ponto em Verso de substrato e substância para minha pesquisa acadêmica, como se fossem duas pernas do mesmo corpo", diz a pesquisadora.
Primeiro romance
A tese de mestrado, apresentada no último dia 31 de janeiro, tem como objeto de análise o primeiro e mais aclamado romance de Conceição Evaristo, “Ponciá Vicêncio” (2003). A obra narra a trajetória da personagem-título desde a infância. Mulher negra, ela migra do interior para a cidade grande e se percebe desgastada pelo preconceito e pela necessidade de lutar para manter sua identidade cultural.
Blenda tem ainda como ponto de partida de estudo o conceito de escrevivência, cunhado por Conceição Evaristo. "Esse conceito é um operador teórico e metodológico de escrita que a Conceição elaborou. Propõe uma autoinscrição da voz da mulher negra no mundo da literatura, uma autoenunciação a partir de sua própria vivência. Como a mulher negra está posicionada na literatura a partir de uma perspectiva própria, um escrever de dentro da situação. Não há como dissociar o locus social e o locus enunciativo. A escrevivência é também uma chave de leitura. A pessoa que lê também se sente afetada por aquilo que lê", descreve Blenda.
Blenda conta que um ponto central da dissertação é articular a escrevivência pela ótica da gestualidade, de como a obra pode ser interpretada pelo gesto, pelo conhecimento que se inscreve pelo corpo. "Investigo como o gesto de Ponciá, que trabalha junto com a mãe o barro, a cerâmica, a argila, se configura como uma episteme e como se relaciona com a memória ancestral do corpo e sua relação com a ancestralidade", diz.
Ela lembra como as culturas africanas muitas vezes não se baseiam na escrita alfabética, ainda que presente, mas muito pela oralidade, pela transmissão do conhecimento pela oralidade, o que não é um conhecimento menor porque não está escrito.
Palavra oral
"Para povos africanos, a palavra oral carrega uma força vital, que tem relação com a ancestralidade, uma força que movimenta e impulsiona a vida. Um conceito muito presente no fundamento da literatura de Conceição Evaristo, junto com a imagem da mulher negra, a mãe preta. A oralidade e a ancestralidade compõem a escrevivência presente no romance."
A autora participou, entre outubro de 2022 e dezembro de 2023,de um grupo de estudo formado pela própria Conceição Evaristo, quando ela se tornou professora titular da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, parceria entre o Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA) e o Itaú Cultural. "Estar em contato direto com ela, poder esclarecer dúvidas, estar entre pessoas de diferentes áreas, foi uma forma até de lapidar meu pensamento, o que foi importante no encaminhamento da dissertação."
Blenda nasceu em Aracaju e mudou-se para Recife aos 8 anos de idade. Vive em São Paulo há oito anos. Graduada em jornalismo pela pela Universidade Católica de Pernambuco, ela trabalhou como repórter fotográfica, sem deixar de lado seu gosto pela literatura.
"Comecei a identificar que aquilo que as escritoras estavam escrevendo dizia respeito às minhas próprias vivências, me identificava muito com o que lia, com que a Conceição escrevia, e nem conhecia a escrevivência na época", relata. Para Blenda, a literatura é um lugar potente de criação de mundos. "É pensar, por exemplo, nas possibilidades da imaginação, da ficcionalização, da fabulação, e como isso está atrelado à nossa experiência, nossa existência como possibilidade pulsante de movimento."
Principalmente para mulheres negras, continua Blenda, é um modo de afirmação de seu lugar no mundo, um modo de poder falar de si e que escapa de estereótipos tão presentes na estrutura social, que colocam as pessoas negras em lugar de subalternidade.
"Na literatura, na arte de modo geral, existe a possibilidade dessa pulsação de criação imaginativa, de pensar novas oportunidades da existência negra. A gente consegue rasurar esses estereótipos, os preconceitos, confrontar essas estruturas de poder hegemônico que permanecem fazendo o racismo, o sexismo, a opressão de classes, o preconceito linguístico operando na sociedade. E tudo o que traz consigo toda a subjetividade das pessoas negras", pontua.