Em 2012, a atriz, produtora e roteirista mineira Flávia Prosdocimi deu início a um projeto sem maiores pretensões no qual dedicaria todas as manhãs à escrita de contos cuja temática se aproximasse do universo de Nelson Rodrigues: histórias de ficção que expõem a sordidez humana e a hipocrisia da sociedade com traços cômicos, sempre terminadas por um final inesperado, geralmente trágico.
Inspirada no nome do jornal em que o dramaturgo trabalhou, a empreitada de Prosdocimi recebeu o nome de “Correio da Manhã”. “Todos os dias, eu acordava e perguntava: sobre o que vou escrever hoje?”, lembra ela. “Era como se fosse uma correspondência da manhã. E ainda fazia alusão ao jornal”, emenda.
Assim nasceram contos como “A guarda”, a respeito de uma tragédia que se abate sobre um casal que viveu em harmonia nos primeiros anos do casamento, mas depois de algum tempo passou a viver uma rotina marcada pelo desamor; “A sogra”, que descortina uma relação de ciúmes doentio de uma mulher em relação ao filho; “Abortado”, que mostra as últimas consequências da repressão à homossexualidade; e “O emprego”, que discute o desejo insaciável por dinheiro, capaz de levar as pessoas a aceitarem as mais infames e degradantes situações.
Todos esses contos – e outros oito escritos na mesma época – estão reunidos no livro “Antologia do remorso” (Giostri Editora), que será lançado em Belo Horizonte, na próxima sexta-feira (16/2).
“Comecei esse projeto do ‘Correio da Manhã’ no ano em que se comemorava o centenário do nascimento do Nelson Rodrigues (1912-1980). E ele sempre foi uma referência para mim, como atriz – quando eu estava na faculdade, li toda a obra dramatúrgica dele”, conta Prosdocimi. “Minha intenção, então, foi a de fazer uma experiência literária pensando em como o Nelson Rodrigues contaria histórias com base no cotidiano de 2012.”
Adaptação para o palco
Antes de virar livro, contudo, alguns dos textos de Prosdocimi foram adaptados para o teatro por Daniel Belmonte, que estreou a peça “Antologia do remorso” em junho de 2015, no Sesc Tijuca, no Rio de Janeiro.
“Ele fez uma adaptação literal dos contos, sem nenhuma alteração no texto”, lembra Prosdocimi. “E, durante essa adaptação, Daniel me propôs escrever outros contos que pudessem entrar no espetáculo. Eu escrevi, mas eles acabaram não entrando. Deixei tudo guardado e somente agora, 12 anos depois, voltei neles e resolvi lançar como livro”, comenta.
Nesse intervalo de tempo, ela se mudou para a Itália, frustrada com o cenário político que se descortinava em 2019 e com as consequências disso no campo da cultura.
Conforme Prosdocimi resume, embora seus contos se inspirem nas crônicas rodrigueanas, eles “têm um belo fundo de verdade”, no qual “os limites da realidade foram extrapolados, as histórias foram ficcionalizadas e os personagens ganharam contornos hiperbólicos, sublinhando a dramaticidade de situações que, infelizmente, continuam sendo comuns” na sociedade brasileira.
A influência de Nelson Rodrigues, por sua vez, se apresenta em camadas que vão além da crítica contundente e visceral da hipocrisia humana, sobretudo quando o assunto é relacionamento amoroso. O conto “Do lar”, de Prosdocimi, por exemplo, traça certo paralelo com “Gato cego”, de Nelson Rodrigues, ao ter, na questão central da trama, a família tentando controlar o destino do filho, obrigando-o a seguir uma profissão indesejada.
Da mesma forma, “Crime presumido” alude ao texto “A inocente”, de Rodrigues, ao abordar de maneira trágica o ciúme doentio dos homens e a maneira como eles enxergam suas esposas como propriedade. Por aí vai seguindo o novelo de referências que Prosdocimi pegou de Rodrigues.
Frases curtas e diretas
Também é possível notar a influência do dramaturgo carioca na estrutura formal do texto da mineira. Da mesma forma que em “A vida como ela é”, os contos de “Antologia do remorso” são marcados por frases curtas, na ordem direta e divididas por intertítulos, quase sempre de uma única palavra.
“É claro que tem um pouco do Nelson Rodrigues ali e um pouco da Flávia”, afirma a autora. “Do Nelson, tem um pouco desse sarcasmo, de falar da família e realmente tratar das mazelas que a gente coloca embaixo do tapete. Dessas coisas que a gente não quer que sejam expostas, que são uma certa podridão, uma hipocrisia familiar”, diz.
“Por outro lado, acho que o que tem de característica minha ali é o final do algoz, que sempre paga caro pelo que fez. Além disso, o Nelson Rodrigues era um cara super de direita, conservador, bem reacionário mesmo; algo em que nos distanciamos”, comenta ela.
Em maio, “Antologia do remorso” ganhará nova adaptação para o teatro, com montagem na capital mineira. O espetáculo, contudo, não tem nenhuma relação com a peça de 2015. “É uma montagem completamente nova. Não sei muitos detalhes, porque eu não vou trabalhar como atriz, só mesmo como autora e espectadora.”
“ANTOLOGIA DO REMORSO”
• Flávia Prosdocimi
• Editora Giostri (100 págs.)
• R$ 52
LANÇAMENTO
• Na próxima sexta-feira (16/2), às 19h, na Livraria Leitura do BH Shopping (BR-356, 3.049, Piso Ouro Preto, Belvedere). Entrada franca. Mais informações: (31) 3263-2700.