“Ninguém começa uma nova vida aos 72 anos!” Ao ouvir o comentário do sobrinho-neto, de 25 – palavras com força suficiente para estilhaçar sentimentos e nublar caminhos –, Rui responde à flechada verbal com silêncio e passos seguros, ambos certeiros.


A seta também pode indicar saídas, e é assim que ele entende o sinal: sair da solidão na qual se encontra mergulhado até a raiz dos cabelos grisalhos. Trata-se de um momento de decisão no filme “Horizonte”, em cartaz em Belo Horizonte, delicada história ambientada numa cidade do interior de Goiás.


Diante das primeiras cenas do longa-metragem, estreia na direção do também ator Rafael Calomeni, o espectador imagina que “Horizonte” poderia tranquilamente se chamar “Vidas amargas”, copiando o clássico de Elia Kazan (1955).


Mas o título escolhido traz esperança, e é nela que alguns personagens, notadamente Rui, solteiro e sem filhos, muito bem interpretado pelo ator Raymundo de Souza, parecem se espelhar, embora não saibam exatamente onde encontrá-la. E se ela realmente existe.


O café quente, muitas vezes amargo, em outras, doce demais, pontua as relações da família após a morte do irmão de Rui, que deixou uma casa de herança. O núcleo se fragmenta, entram novos integrantes, a vida vira do avesso. Onde estará a porta de saída para quem é chamado de idoso?


A bebida cotidiana, então, muda de cor e temperatura. A cachaça passa a compor a cena, celebrando momentos de completa indefinição de rumos ou aquecendo a tentativa de a família voltar a se reunir, mesmo que a duras penas. E Rui, sozinho, procura a saída.


PERSPECTIVA

“Minha ideia foi sempre colocar o Rui com a perspectiva de um horizonte. Precisamos olhar para a frente, tomar decisões que, na maioria das vezes, dependem de nós mesmos”, afirma Rafael Calomeni, que está sempre interessado, segundo ele, em boas histórias, sobre o cotidiano do ser humano que ‘respira’ e as relações com seu meio social.


Mesmo focando o longa na trajetória de Rui, o diretor quer falar para todas as gerações. “Tivemos plateias com muitos jovens, que se declararam emocionados. Devemos entender que todos nós vamos chegar lá… e convivemos com pessoas mais velhas: os pais, um tio, um parente.”


Os personagens vivem em Goiás, alguns com sotaque bem característico do interior, mas poderiam perfeitamente viver em qualquer lugar do Brasil profundo. As relações se desdobram num leque de ressentimentos, raiva, vingança e, felizmente, afetos, como redenção, entre poucos amigos.


Na maioria das vezes, a câmera do diretor se assemelha a uma testemunha silenciosa, um divã para lamentos noturnos, talvez um espelho para cada um mostrar sua solitária existência.


O filme tem no elenco, além de Raymundo de Souza e Suely Franco, as atrizes Alexandra Richter, Ana Rosa e Perola? Faria. O roteiro é de Dostoiewski Champangnatte, natural do estado do Tocantins.


“Foi muito bom ter a Suely e a Alexandra, atrizes que fazem comédia, em papéis dramáticos neste filme. Com certeza, os artistas brasileiros fazem o que nenhum outro consegue. Muitos dos nossos atores, tão bem preparados, às vezes são mal aproveitados”, observa o diretor.


Na trama, Rui e Jandira (Suely Franco) se conhecem após se mudarem para uma “vila de idosos”, destinada a pessoas carentes da terceira idade. Tudo ali é novidade, inesperado, tem um pedaço de terra para plantar e uma cadeira na porta para um bate-papo.


Mesmo com reticências por parte de Jandira, os dois começam uma amizade. A solidão os leva a cumplicidades únicas, até que se veem apaixonados. Entre um galanteio e outro, em meio à omissão de partes do passado dos dois lados, Rui canta ao violão, e Jandira ouve o velho bolero “Boneca cobiçada”. A canção arrasta Jandira como um ímã: “Dois meses de aventura, o nosso amor viveu, dois meses com ternura, beijei os lábios teus”.


Mas a flecha do tempo não falha. Tem alvos certeiros, dificilmente erra a direção. E há sempre um velho ombro amigo – esse, sim, um arco que protege, anima e revigora a alma contra setas envenenadas. Há muito futuro (fica a mensagem, sem spoiler) em qualquer tempo… basta quebrar as barreiras e enxergar o horizonte. E fazer as melhores escolhas.


“Quando o Rui chega à vila, ele dá um passo firme, pisa com o pé direito. Recriei uma foto antiga do Bob Dylan, que traz o cantor com o violão nas costas”, diz Calomeni.


Prestes a completar 72 anos, a mesma idade de Rui, o ator Raymundo de Souza fez intensa pesquisa para o papel, incluindo visita a instituições de longa permanência para idosos. “Rui é um homem carinhoso, quer amor e respeito, mas se sente renegado pelos familiares. Vi que muitos se sentem abandonados.”


A preparação foi fundamental para o bom resultado do filme, revela Raymundo. “Ensaiamos muito, especialmente para a primeira cena, quando a família se reúne. Cada um sabia de cor o texto do outro, foi como numa peça de teatro. Gosto de ser dirigido, e o Rafael Calomeni foi muito bom, estava sempre atento, corrigindo quando necessário”, diz o ator, que tem 56 anos de carreira e começou no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em São Paulo.

“HORIZONTE”
(Brasil, 2024, 108 min. Direção: Rafael Calomeni. Com Suely Franco, Raymundo de Souza, Alexandra Richter, Ana Rosa, Perola Faria, Ronan Horta, Arthur de Farah, Paulo Vespucio. Em cartaz no Shopping Cidade (Sala 6, 16h10)

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