igreja São Francisco de assis da penitência dá testemunho secular da convivência do antigo e do moderno em ouro preto e é um dos ícones do barroco que inspiraram grupo de artistas -  (crédito: Edésio Ferreira/EM/D.A Press)

igreja São Francisco de assis da penitência dá testemunho secular da convivência do antigo e do moderno em ouro preto e é um dos ícones do barroco que inspiraram grupo de artistas

crédito: Edésio Ferreira/EM/D.A Press

Caminhar pelas ruas de pedra de Ouro Preto, com o Sol iluminando os monumentos dos séculos 18 e 19, é redescobrir a cidade que encantou e impactou, há um século, o grupo modernista. Entre os templos católicos visitados por Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral e demais integrantes do grupo está a Igreja São Francisco de Assis da Penitência, eleita, em 2009, uma das sete maravilhas de origem portuguesa no mundo. Fica no Largo do Coimbra, onde há a feira de artesanato, bem em frente à Casa de Tomás Antônio Gonzaga, hoje ocupada pela Secretaria Municipal de Cultura e Turismo.

 


A Prefeitura de Ouro Preto é parceira na realização do seminário “Minasmundo, Ouro Preto (2024-1924)”, e o entusiasmo também toma conta do chefe do Executivo local, Angelo Oswaldo, atento estudioso da Caravana Modernista em Minas e de seus desdobramentos. “Em 1922, em São Paulo, o Brasil descobriu a arte moderna, mas, em 1924, a arte moderna descobriu o Brasil”, diz Angelo Oswaldo.

 

Com o objetivo de conhecer o “Brasil profundo”, os modernistas queriam mostrá-lo a Blaise Cendrars (1887-1961), romancista e poeta suíço-francês. Sobre a viagem brasileira, o autor escreveu o livro de poemas “Feuilles de route” (“Notas de viagem”), na qual a imagem da “Negra” (1923), de Tarsila do Amaral, figura na capa.

 


Convite feito, convite aceito. Curioso para explorar o país, Blaise Cendrars se uniu à caravana dos modernistas brasileiros, idealizada durante o carnaval de 1924, passado pela turma no Rio de Janeiro (RJ). Segundo os coordenadores da rede de pesquisadores Minasmundo, a visita impactou a “agenda individual” dos participantes, conforme documento de divulgação. “Para Tarsila do Amaral, há uma redescoberta das cores brasileiras que ficaram esquecidas.

 

Com Oswald, Aleijadinho traz uma consequência intensa para seu modo de sentir e pensar o Brasil. Se antes da viagem, em março de 1924, o poeta publicara o 'Manifesto Pau-Brasil', Oswald ‘replanta’ o pau-brasil vendo no Aleijadinho o grande deglutidor da arte europeia, para lembrar das ideias publicadas em 1928 no seu ‘Manifesto Antropofágico’.”

 


Cinco anos antes de a caravana entrar nos trilhos, a obra de Aleijadinho havia causado forte impressão a Mário de Andrade. Em 1919, o escritor foi a Mariana, na Região Central, para encontrar o poeta Alphonsus de Guimaraens (1870-1921). Retornando a São Paulo, fez uma palestra sobre a singularidade de Aleijadinho na história da arte.

 


Quanto a Olivia Guedes Penteado, após a visita a Minas ela articulou a criação de uma entidade particular denominada Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil, que seria responsável pela proteção e conservação do patrimônio cultural brasileiro. A ideia, no entanto, ficou só no papel.

 


“Cosmopolita”

 


A palavra é fundamental para se entender melhor a “redescoberta” do país a partir da Caravana Modernista de 1924. “Os modernistas olham para dentro do Brasil, mas sem nacionalismo. Na verdade, dão uma dimensão cosmopolita ao que veem, considerando a obra de Aleijadinho, notadamente os 12 profetas de Congonhas (Região Central de Minas), ‘diferente’, e não cópia de originais europeus”, diz o professor André Botelho, da coordenação do Projeto Minasmundo.

 

Cosmopolita, portanto, não é o modernista que foi a Paris ou Ouro Preto, “mas aquele que entende e reorienta sua conduta em relação à diferença, ao outro; aqueles e aquelas que criaram e criam ramais e caminhos de comunicação democrática”.


Traços de Tarsila mostram Minas na década de 1920


Personalidade das artes e da cultura em Minas Gerais, a belo-horizontina Priscila Freire, de 90 anos, esbanja vitalidade, tem memória prodigiosa e um currículo exemplar, especialmente na gestão de museus em vários tempos e espaços mineiros. No seu acervo particular, ela guarda o que chama de “obra de arte e documento”.

 

São dois trabalhos (grafite sobre papel), ocupando frente e verso, na medida de 23,5 por 30,5 centímetros. De um lado, estão esboços de “Juatuba e Carmo da Mata”, do outro “Juatuba e Tartária”, conforme consta no catálogo da exposição “Tarsila Popular”, no Museu de Arte de São Paulo (SP), em 2019.

 

Os desenhos foram adquiridos há mais de 20 anos num antiquário em BH, tendo pertencido ao marchand Max Perlingeiro, do Rio de Janeiro. “Além de admirar a obra de Tarsila, vi que era um documento importante da viagem dos paulistas a Minas”, afirma Priscila, que, ao lado do marido – o médico Alberto Freire de Carvalho, falecido em 2012 – formou a Coleção Alberto e Priscila Freire.


O deslumbramento frente à simplicidade

 

No catálogo da exposição “Tarsila Popular”, que traz obras de Tarsila do Amaral sobre Lagoa Santa, Ouro Preto, Congonhas, há uma frase da artista que mostra o significado da Caravana Modernista em Minas. “...senti, recém-chegada da Europa, um deslumbramento diante das decorações populares das casas de moradia de São João del-Rei, Tiradentes, Mariana, Congonhas do Campo, Sabará, Ouro Preto e outras pequenas cidades de Minas cheias de poesia popular. Retorno à tradição, à simplicidade”.

 


E mais, ela prossegue: “As decorações murais de um modesto corredor de hotel; o forro das salas, feito de taquarinhas coloridas e trançadas; as pinturas das igrejas, simples e comoventes, executadas com amor e devoção por artistas anônimos; o Aleijadinho, nas suas estátuas e nas linhas geniais da sua arquitetura religiosa, tudo era motivo para nossas exclamações admirativas.

 

Encontrei em Minas as cores que adorava em criança. Ensinaram-me depois que eram feias e caipiras. Segui o ramerrão do gosto apurado... mas depois vinguei-me da opressão, passando-as para as minhas telas: azul puríssimo, rosa violáceo, amarelo vivo, verde cantante, tudo em gradações mais ou menos fortes, conforme a mistura de branco”.


Em BH, encontro com Nava e Drummond


A capital mineira tinha apenas 26 anos de existência desde a inauguração, quando os integrantes do grupo paulista, acompanhados de Cendrars, desembarcaram, sendo recebidos pelo então diretor da Imprensa Oficial, Noraldino Lima (1885-1951).

 

A arquitetura eclética não agradou, tanto que os modernistas chamaram de “bolo de noiva” o estilo dos prédios do início da construção da cidade, considerado por Oswald de Andrade “os versalhes de estuque”. Mas o destino era visto como importante, e serviu de inspiração para o poema de Mário de Andrade, “Noturno de Belo Horizonte”, escrito em 1925.

 

Escreveu o poeta:


“Maravilha de milhares de brilhos e vidrilhos,

Calma do noturno de Belo Horizonte...

O silêncio fresco desfolha das árvores

E orvalho o jardim só.

Larguezas.

Enormes coágulo de sombra.

A polícia entre rosas.

Onde não é preciso, como sempre...

Há uma ausência de crimes.

Na jovialidade infantil do friozinho.


Em Belo Horizonte, a caravana se encontrou com os jovens modernistas mineiros do Grupo da Rua da Bahia: Carlos Drummond de Andrade, então com 22 anos, Pedro Nava, Emílio Moura, Martins de Almeida e João Alphonsus. Mário trocaria cartas até o fim de sua vida com Drummond, um de seus mais frequentes correspondentes. Em BH, os paulistas ficaram hospedados no Grande Hotel, majestosa construção demolida para dar lugar ao Edificio Maletta, na Rua da Bahia, no Centro.

 


Na edição de 27 de abril de 1924, o “Minas Gerais”, Diário Oficial do estado, trouxe a matéria intitulada “Excursão de arte”. “Os ilustres excursionistas vieram percorrer as cidades antigas e os sítios históricos e admirar as igrejas e outros monumentos do século 18, que possuímos (...) Depois de visitar São João del-Rei e Tiradentes, onde assistiram à Semana Santa, os nossos hóspedes vieram para Belo Horizonte, e aqui, quarta-feira última, fizeram uma excursão pela Serra do Cipó, detendo-se longo tempo em Lagoa Santa, onde admiraram as pinturas da Matriz e as belezas naturais do lugar, realizando um passeio na grande lagoa ali existente”, diz um trecho.

 


Sobre Lagoa Santa, escreveu Oswald de Andrade, em Pau-Brasil (1925):

 


“Águas azuis no milagre dos matos.

Um cemitério negro.

Ruas de casas despencando a pique,

No céu refletido.”

 


O grupo retornou a São Paulo em 29 de abril de 1924, conforme descreve o artigo “Sob o signo de Aleijadinho – Blaise Cendrars, precursor do patrimônio histórico” (2012, revista Arquitextos), do professor da Universidade de São Paulo (USP) Carlos Augusto Calil.

 

O pesquisador ressalta a preocupação dos modernistas com a situação dos templos barrocos. “Ao lado do Aleijadinho, outro aspecto chamou a atenção dos descobridores do Brasil, como os chamava, não sem uma ponta de autoironia, Oswald de Andrade: o abandono das igrejas, possuidoras de um acervo inigualável, objeto da cobiça dos antiquários e da descura dos padres. Numa crônica de ‘Malazarte’, Mário de Andrade constatava perplexo: ‘Que é da grandeza antiga? Essa dorme sono de cobra, enorme, tombando aos pedaços, apodrecida pelas goteiras, na Trindade, no Rosário, na casa de Tiradentes. É pena. Quanta obra de arte a se estragar!’”