A banda Carne Doce avalia que o cenário ficou mais restrito para a produção alternativa ao sertanejo no Centro-Oeste -  (crédito: Gabriel Lara Arruda/Divulgação)

A banda Carne Doce avalia que o cenário ficou mais restrito para a produção alternativa ao sertanejo no Centro-Oeste

crédito: Gabriel Lara Arruda/Divulgação

Não é fácil ser indie em Goiânia. Sem ressentimentos, mas com uma pontada de nostalgia, a banda Carne Doce chega ao quinto álbum, "Cererê". O título, para aqueles que conheceram a cena daquela que, nos anos 2000, chegou a ser chamada de "Seattle brasileira", é autoexplicativo.


Martim Cererê é o centro cultural na capital de Goiás que, no início deste século, foi sede de alguns dos festivais de música independente mais importantes não só do Centro-Oeste, como do país. Entre eles, a Bananada (que há alguns anos não é realizada) e o Goiânia Noise, que chega à sua 28ª edição em abril (mas em outros espaços da cidade).

 


"A gente não tem vontade de falar aquele papo velho de que na 'nossa época era melhor'. Mas bateu uma nostalgia, um desejo de resgatar o que inspirou a gente a ser músico. Estamos em um momento de poucos shows. A pandemia trouxe muitas dificuldades para o mercado. Então deu saudade daquele momento em que a música significava o máximo da fantasia, do sonho, da inspiração", afirma Salma Jô, vocalista e letrista do Carne Doce.


Tanto que as duas primeiras músicas do álbum, a dançante "Noite dos tristes" ("Na noite dos tristes revivendo o mistério/De ver toda essa alegria transbordar"), e a reflexiva "Cererê" ("Pro Cererê/ Lá ia você /Perdida, vadia/Sem entender/Quem podia ser/Só ia na fantasia/Com toda gente lá", acabaram conceituando o trabalho.

 


O disco que vem agora a público reúne 10 faixas. Três delas, "Na bad", "Latada" e "Na lona", haviam sido lançadas como singles em 2022. Falando do universo da música, ou das relações amorosas, o Carne Doce não foge à sua origem. Indie rock com uma figura feminina forte à frente – a voz personalíssima de Salma preenche todas as canções, ora quase lânguida ("Latada") , ora com uma intensidade raivosa ("Festa").


Gestação caseira


"Cererê" é o disco que também marca os 10 anos da estreia da banda em disco (com o álbum independente "Carne Doce", de 2014). O grupo foi formado um ano antes, a partir do casal Salma e Macloys (guitarra). A eles se juntaram João Victor Santana (guitarra e samples), Aderson Maia (baixo) e Fred Valle (bateria).


"Para a gente, o show é tanto o encontro com o público como a inspiração. Compúnhamos, em parte, um novo álbum na turnê do disco anterior", diz Salma. Desta vez, não. "Cererê" foi todo gestado em casa, literalmente (no caso, a sala de Salma e Macloys).


O disco anterior, "Interior" (2020), foi lançado em meio à pandemia. No pós-crise sanitária, encontraram um cenário de terra arrasada. "Não só por causa da pandemia, mas também pelas políticas públicas do governo anterior, que tinham uma orientação para desidratar o ecossistema. Produtores, músicos, artistas, todo o pessoal ou saiu (do cenário) ou 'minguou'. A pandemia passou, o governo mudou, mas o cenário independente não superou a crise", diz Macloys.


Salma acrescenta: "Foram quase três anos em que os artistas autorais ficaram sem formar público jovem. E os shows são também um evento de socialização. Ou seja, (a ausência de shows ) teve um impacto grande no comportamento do público". E há um complicador no caso do Carne Doce. Goiânia continua sendo um dos principais pólos do sertanejo.

 


"No começo dos anos 2000, o cenário era mais diverso em termos de representatividade. O rock era um grande guarda-chuva para outras vertentes, como rap, punk, LGBT. Os festivais e o Cererê eram vistos como a possibilidade de se contrapor à monocultura do agro. À medida em que a internet se popularizou e as coisas foram mudando politicamente, o rock ganhou outros caminhos. Virou uma coisa meio antiquada, não significa mais contestação. Temos visto até um movimento contrário, do rock associado ao conservadorismo", comenta Macloys.


Mas ele diz que justiça tem que ser feita. "O Goiânia Noise acontece de forma ininterrupta há 28 anos", aponta, logo acrescentando: "Mas aquela efervescência de a cidade receber artistas, de você circular, da formação de novas bandas ficou na memória. Hoje não está fácil de jeito nenhum. A gente sente o isolamento geográfico e político. Nos sentimos mesmo à margem."


Seja em que cenário for, a roda não pode parar. Em 2024, Salma e Macloys, além dos 10 anos de estreia em disco, também celebram os 15 de casamento. Há algum tempo o casal formou o projeto acústico Salma e Mac, de voz, violão e canções doces, fofas, que não cabem no repertório da banda. Em 2022, lançaram o disco "Voo livre", produzido por Kassin.


"É um trisal monogâmico", brinca Mac, a respeito do triplo casamento. "Uma traição estética, de certa forma. A banda é indie; como duo tocamos mais bossa nova, MPB", comenta Salma.

Shows de lançamento

A temporada de shows de "Cererê" tem início no próximo sábado (9/3), quando o Carne Doce toca em Curitiba. Depois, segue para São Paulo (10/3) e Brasília (17/3). Em Goiânia, o novo álbum será lançado no Goiânia Noise, em 13 de abril. A última vez que a banda tocou em BH foi há quase dois anos, quando dividiu uma noite d’A Autêntica com Alice Caymmi. Por ora, não há previsão de retorno à cidade.

Carne Doce
Independente com distribuição da Tratore (10 faixas)
Disponível nas plataformas digitais.