A ambígua relação que se estabelece entre a vivaz aluna Sevim (Ece Bagci) e o melancólico professor Samet (Deniz Celiloglu) é motivo de diz-que-diz na trama -  (crédito: Imovision/Divulgação)

A ambígua relação que se estabelece entre a vivaz aluna Sevim (Ece Bagci) e o melancólico professor Samet (Deniz Celiloglu) é motivo de diz-que-diz na trama

crédito: Imovision/Divulgação

Não é modesto o projeto de Nuri Bilge Ceylan. O cineasta turco capta da vida seus altos e baixos, acertos e erros, acasos felizes ou infelizes. Também não é otimista. Em certos momentos de "Ervas secas", deixa até a impressão de ser o trabalho de um discípulo de Samuel Beckett.


Isso acontece logo que começa. Uma paisagem branca toma a tela e mal permite ver a imagem mínima do homem que caminha na direção da câmera; aos poucos, reconhecemos ali o melancólico Samet, professor em uma aldeia da Turquia bem distante de Istambul, a capital do país.

 


Samet espera a transferência para um lugar mais aceitável, como os personagens beckettianos esperam Godot. Isso é um sentimento que o filme transmite, porque temos um quadro bem coloquial. Samet divide a casa com o amigo Kenan, também professor. Em aula, dedica-se a mimar uma de suas alunas, Sevim.


Por conta de um bilhete de Sevim que ele recolhe e joga no lixo, acaba denunciado na diretoria. Kenan, aliás, também entra no rolo. A denúncia sobe à diretoria e daí a instâncias mais altas.


Isso já é o bastante, desde já, para entendermos por que surgiu esse subgênero que se pode chamar "filme de professor", e que corre o mundo. No Brasil, na Turquia, na França ou nos Estados Unidos, eles vivem em situação difícil, não só econômica.


O círculo da espera então desaparece, dando lugar ao do temor e às discussões burocráticas.


Situação intrigante

 

A pivô dessa parte da trama é a jovem Sevim, com seu olhar cheio de ambiguidades. Mas não são menos ambíguas as atitudes de Samet. O espectador fica um pouco entre os dois, o que cria uma situação intrigante.


Mas o filme não se detém aí. Estamos diante de uma deriva: a sala de aula, a casa, a diretoria, a espera da transferência, a desconfiança dos colegas, o inverno que parece não ter fim, o encontro dos amigos com a bela Nuray, a questão da perna de Nuray – por conta de uma explosão, ela perdeu uma perna até a altura do joelho e usa uma perna mecânica.


À medida que o filme evolui, cresce também o diz-que-diz a respeito do que os protagonistas fizeram ou deixaram de fazer, até que Samet ameaça entrar num surto paranoico em que o filme parece pronto a se perder.


Mas logo se refaz, pois percebemos o quanto de estratégico existe nesse surto, que lhe fornece a ocasião de passar a perna em Kenan, o amigo, para melhor ficar a sós com Nuray, embora tudo ali seja sempre provisório, já que o essencial é a espera e a sensação de um tempo que não passa, de um inverno que dura para sempre.


Veremos que não, não dura para sempre. E esse é um dos aspectos surpreendentes de "Ervas secas". O pessimismo que anima o início do filme se transforma. E o próprio filme muda enquanto observa as vidas que o frequentam ganharem novas formas, novas maneiras de se exprimir.


A espera por uma transferência, que no primeiro momento parece infinita – ou seja, fora do tempo –, não se torna mais leve. No entanto, o fio que delicadamente se vai tecendo aponta para a existência de sentido mesmo nesse lugar onde parece não haver nem existência e ainda menos sentido. É como se todos ali fossem como Nuray e, como ela, todos capazes de, ainda assim, existir.

 


Apreciar "Ervas secas" significa renunciar ao frenético tempo contemporâneo (isto é, dos filmes contemporâneos) para entrar em outro, talvez atemporal, onde os personagens se delineiam através de seus olhares, seus gestos e de suas falas – este é, afinal, um filme do diálogo –, fugas, esquecimentos.


A deriva é a única constante. E, afinal, percebe-se que a vida é mesmo feita de adversidades que é preciso superar para existir. Posso estar enganado, mas "Ervas secas" me pareceu um filme de mestre.