na trama, três professores tentam lidar com suas frustrações e com o desagrado de viver num vilarejo remoto da turquia 
 -  (crédito: imovision/Divulgação)

Na trama, três professores tentam lidar com suas frustrações e com o desagrado de viver num vilarejo remoto da turquia 

crédito: imovision/Divulgação

Cannes, França – Sob a neve que cobre um pequeno vilarejo da Turquia, estão sonhos e frustrações que se acumulam nas mais de três horas de "Ervas secas", filme do premiado Nuri Bilge Ceylan que foi exibido no Festival de Cannes do ano passado, onde arrematou o prêmio de atuação feminina para Merve Dizdar. O longa estreia nesta quinta-feira (14/3) nos cinemas brasileiros.


No centro da trama está Samet (Deniz Celiloglu), professor de artes numa escola frequentada por crianças que mal têm o que vestir, muito menos tempo para sonhar com uma carreira naquela área. Por causa das burocracias do sistema educacional, ele precisa passar alguns anos no local, até poder ser transferido para uma cidade grande.


Assim, seu sentimento de frustração cresce, não só por sua própria situação, mas também por perceber que tem pouco a oferecer àqueles estudantes, para os quais a vida não reserva um futuro muito promissor. A paisagem gélida corrobora para o sentimento de desalento – não há erva, ou folhagem, capaz de crescer ali.

 


Um dúbio relacionamento se impõe sobre a narrativa. Samet tem uma clara preferida em sua turma, Sevim (Ece Bagci), em idade pré-adolescente, que toma como pupila. Ele a mima com presentes que só podem ser encontrados na cidade, passa tempo conversando com ela em sua sala e reserva a ela carícias e palavras de uma doçura que não combina com seu jeito áspero.


Não é com surpresa, portanto, que o diretor da escola recebe uma denúncia anônima de que a relação que se estabeleceu entre eles é imprópria, jogando para o público a possibilidade de Samet ser pedófilo. Nada em cena confirma, mas a virada de seu personagem, após a acusação, não faz dele menos desagradável.


"O diretor deixa claro que não houve abuso sexual, ele fala apenas do comportamento em aula, mas claro que eu não posso controlar o espectador que pensa que talvez haja algo mais profundo escondido, que não chegou à denúncia", afirmou Ceylan, em Cannes, a um grupo de jornalistas que estavam ali após a exibição de "Ervas secas".


Mas ele não nega que, a partir da denúncia, o protagonista dá início a uma série de abusos psicológicos. "Ele está numa posição hierárquica e, ao se sentir humilhado, a violência dentro de si aumenta, dando vazão à crueldade, como acontece com muitos de nós em diferentes situações."

 


Samet não entende por que Sevim falaria contra ele – seria ela a culpada, numa dedução fácil e imponderada –, e passa a destratar a aluna com uma maldosa obsessão. Beira a tortura psicológica, o que não torna a experiência de acompanhá-lo exatamente agradável.


Ceylan deixa claro que não gosta de fazer filmes políticos e que a inspiração para "Ervas secas" foi um caso real sobre o qual leu, ocorrido na mesma região da Turquia. Para ele, é natural que professores criem conexões especiais com determinados alunos – no caso de seu filme, Sevim dá a Samet a energia que ele precisa para encarar o exílio naquele local inóspito.

Sempre cruel


"Mas por causa da decepção pela qual passa, ele começa a ser cruel, porque, na verdade, ele sempre foi assim. Vemos isso até na relação com seu amigo professor. Então, se o aluno fosse um menino, seu comportamento seria o mesmo", diz Ceylan, que não quis que a obra refletisse, por exemplo, o movimento #MeToo, e a compara mais à traição de Júlio César por Brutus.


Junto com o professor com quem divide moradia, alvo da mesma denúncia de que estaria tratando alunas de forma imprópria, Samet cria um laço forte com Nuray, a personagem de Merve Dizdar, também no vilarejo de passagem.

 


É a personagem dela a bússola moral da história. Nuray perdeu uma das pernas devido à explosão de uma bomba, refletindo um caso real do qual Ceylan tomou ciência. Assim, ela viu seus sonhos, também, serem soterrados pela frieza e imobilidade que imperam naquele lugar.


São vários e longos os diálogos travados entre o trio de personagens adultos, que refletem sobre a vida e as expectativas de futuro – ou a falta delas. Há muita verborragia, como é praxe no cinema do turco, que já venceu a Palma de Ouro por "Sono de inverno" e o prêmio do júri por "Era uma vez na Anatólia", que ficam perto das três horas de duração.


"Eu gosto de assistir a conversas, seja no cinema, no teatro ou na TV. Gosto de páginas e páginas de discussão. Eu sou uma pessoa que gosta mais de ouvir do que de falar", diz Ceylan sobre suas longas durações. "Veja, eu preferiria estar ouvindo o que você tem para dizer neste momento do que estar respondendo às suas perguntas."