O diretor diz que o título do filme é uma brincadeira com Lupicínio, cujos registros em imagem não corroboram a ideia de um

O diretor diz que o título do filme é uma brincadeira com Lupicínio, cujos registros em imagem não corroboram a ideia de um "sofredor"

crédito: Luciano Carneiro/O Cruzeiro/Arquivo EM

 

Em cartaz no UNA Cine Belas Artes, em BH, “Lupicínio Rodrigues – Confissões de um sofredor”, que marca a estreia na direção de documentários de Alfredo Manevy, é uma obra de fina artesania.Trata-se de um mosaico que, partindo da biografia do personagem-título, aborda política, racismo, machismo, história, a importância do rádio na primeira metade do século passado e uma indústria musical que ainda engatinhava, tudo isso sem perder a unidade e a coesão.


O diretor, que foi secretário-executivo do Ministério da Cultura entre 2008 e 2010 e presidente da SPcine, diz que sempre achou Lupicínio uma figura fascinante e enigmática – fascinante porque sua música atravessa gerações, sempre na voz dos maiores intérpretes, e enigmática pela forma como ele, vivendo no Rio Grande do Sul, metido em casacos pesados e sobretudos, se viabilizou como sambista.


“A ideia era propor uma imersão nesse universo de Lupicínio, fazer um filme que partisse de uma investigação sobre esse personagem e chegasse a esse mundo que não existe mais, das relações afetivas atravessadas por uma série de fatores, do comportamento de uma época, do rádio e do mercado musical daquele tempo. O desafio foi partir dessa figura e construir essa narrativa”, diz.


Ele diz que a abordagem holística foi construída durante o processo, já que, como diz, em documentários o roteiro só é “escrito” na montagem. O ponto de partida foi tentar entender como Lupicínio chegou à indústria musical de seu tempo, praticamente sem sair de Porto Alegre.


“Diferentemente da ficção, no documentário a gente tira proveito dessa abertura para a pesquisa, para as narrativas que vão surgindo. Você pode alcançar coisas significativas. Fomos nos deparando com a questão do machismo, a questão racial no Sul do Brasil, uma região que se coloca oficialmente como branca”, conta.


Manevy diz que a opção foi por uma perspectiva não linear, para tratar de um compositor negro, que precisava vender seus sambas para comprar o almoço do dia seguinte, e que se tornou uma referência atemporal da MPB.


Ele chama a atenção para o fato de que Lupicínio fez questão de contar a sua própria história. “A gente conseguiu resgatar, no Museu da Imagem e do Som, um áudio que era dado como perdido. (O pesquisador musical) Ricardo Cravo Albin conta que, quando era o diretor, foi procurado por Lupicínio, que queria ser entrevistado, para contar sua história e a história da música brasileira daquela época”, diz.


Biografia romanceada

Essa história, no entanto, deve ser ouvida com algum grau de desconfiança, segundo o diretor, já que Lupicínio romanceava um pouco sua biografia, de forma a torná-la mais alinhada com o personagem de suas músicas, impregnadas de dor de cotovelo ou, como se diz modernamente, sofrência. “Como cineasta, sempre desconfiei dessas versões, desse folclore em torno de Lupicínio”, pontua.


Ele, no entanto, vê nisso também um traço de genialidade do autor de “Se acaso você chegasse” e “Nervos de aço”. “Ele era um criador de lendas, o que era um ingrediente importante para participar daquele mundo, que era o de uma indústria musical incipiente. Ele tinha esse jeito de contador de prosa”, diz, acrescentando que acredita num tipo de documentário mais ensaístico, que tem um pé atrás com a ideia de “verdade”.


“Gosto de explorar a ambiguidade, não tomar tudo ao pé da letra. Construímos essa narrativa usando muitas fotografias em cima de áudios de rádio. Explicitamos que não estamos usando imagens de pessoas ou locais referidos por Lupicínio nas histórias que ele conta, preferimos deixar no ar, para que o espectador decida se aquilo que está ouvindo é verdade, mentira ou meia-verdade. Lupicínio construía histórias junto com sua musicalidade.”


O próprio título do documentário contém mais ironia do que verdade, de acordo com o diretor. Ele aponta que as imagens do compositor, em fotos ou vídeos, revelam uma expressão entre a serenidade e o deboche – ele nunca chegou a ser propriamente um sofredor. “Falar em 'confissões de um sofredor' é uma brincadeira com o próprio Lupicínio. O sofrimento dele tinha um quê de felicidade, e aí Freud explica, ou Nelson Rodrigues”, diz.


Há ainda o fato de que as mulheres, as grandes intérpretes da obra de Lupicínio, invertiam as letras. “É uma resposta potente que elas dão àquele discurso machista, mudando o gênero do narrador nas músicas”, diz. Em vários momentos do filme, a impressão que se tem é de que a caminhada do compositor rumo ao sucesso se deu ao sabor dos ventos e que ele se ocupava mais da boêmia do que propriamente da construção de uma carreira. Manevy ressalva que não era bem assim.


“Lupicínio era muito atento. Uma prova disso são as alianças que ele fez, com Felisberto Martins, por exemplo, que era músico, mas também foi diretor artístico de uma gravadora no Rio de Janeiro. Era comum os produtores aparecerem como coautores. E Lupicínio era versátil, entrou para a história como o pai da sofrência, mas sabia fazer todo tipo de música, o samba carioca, o forró, a guarânia, o samba-canção. Isso me diz que ele jogou o jogo da indústria, estava no lugar certo, na hora certa, numa época de ascensão do rádio”, destaca.


“LUPICÍNIO RODRIGUES – CONFISSÕES DE UM SOFREDOR”
• (Brasil, 2023, 96 min.). De Alfredo Manevy. Documentário. Em cartaz no UNA Cine Belas Artes (Sala 2, 16h30).