Visitante observa a sala de espera do consultório de Freud, em seu apartamento na rua Bergasse, 19, em Viena, hoje transformado em museu -  (crédito: JOE KLAMAR/AFP)

Visitante observa a sala de espera do consultório de Freud, em seu apartamento na rua Bergasse, 19, em Viena, hoje transformado em museu

crédito: JOE KLAMAR/AFP


A curiosidade sobre os hábitos e opiniões de Freud não era estranha aos jovens aspirantes a analistas atendidos por ele, como Abram Kardiner deixa claro em “Minha análise com Freud - Reminiscências”. A vida particular do analista era tema de conversas e rumores entre eles.


Um dos poucos com quem Freud adotava uma postura mais aberta à conversação – os britânicos não ouviam dele sequer uma palavra, além daquelas que a civilidade obriga, segundo o autor do livro – Kardiner aproveita a disponibilidade do fundador da psicanálise para procurar saber sua opinião a respeito de outros analistas.


E ouve comentários sinceros de Freud sobre “Clarence Oberndorf, Alfred Adler e outros”. Quando Kardiner o questiona especificamente sobre a teoria da libido em desenvolvimento por Karl Abraham, Freud responde: “Eu não sei e não estou pronto a emitir uma opinião sobre isso. Mas posso lhe dizer apenas o seguinte: Karl Abraham não é nenhum tolo. Ele é o trabalhador mais correto e honesto que tenho entre meus discípulos. Esse homem não apenas não desperdiça seu tempo, como também é o mais meticuloso e persistente em todo o movimento psicanalítico, hoje. Ele é alguém cujo trabalho merece ser acompanhado, e nós veremos. Apenas o tempo irá dizer”.


Segundo Kardiner, “o único de quem ele não falou foi Jung. Ele se recusou, sob a alegação de que isso seria muito doloroso para ele, tanto pessoal quanto cientificamente”.


Autocrítica freudiana

Quando pergunta a Freud como ele se vê no consultório, a resposta é: “Fico satisfeito que você o tenha perguntado, porque, francamente, não tenho grande interesse em problemas terapêuticos. Estou impaciente demais agora. Tenho algumas desvantagens que me desqualificam como um grande analista. Uma delas é que encarno em demasia o papel de pai. Em segundo lugar, estou excessivamente ocupado com problemas teóricos o tempo todo, de modo que, sempre que tenho oportunidade, trabalho neles em vez de prestar atenção aos problemas terapêuticos. Em terceiro lugar, não tenho paciência para manter os pacientes por um longo período, me canso deles, e quero propagar minha influência”.


Ainda no campo das opiniões, o analisando obtém do autor de “A interpretação dos sonhos” uma explicação sucinta e cabal sobre seu apreço por Lou Andreas Salomé (1861-1937): “Há pessoas que têm uma superioridade intrínseca. Elas têm uma nobreza inata. Ela simplesmente é uma dessas pessoas”.

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Autora do posfácio da edição brasileira da obra, a psicóloga israelense Anat Tzur Mahalel observa que Kardiner teve uma difícil elaboração do “luto” pelo fim da análise, que ele julgou abrupto e precoce. Embora o prazo de seis meses houvesse sido acordado entre os dois antes do início das sessões, o jovem médico norte-americano sequer registrou essa informação e foi tomado de perplexidade quando Freud o lembrou que faltava menos de um mês para o encerramento do processo.


“Fiquei transtornado com isso e protestei com veemência, mas Freud não se comoveu”, rememora. No último dia de análise, Kardiner se sentiu “desconfortável, relutante em partir e, de certo modo, ressentido com isso”.


De volta aos Estados Unidos, Kardiner persistiu no objetivo de fazer uma carreira como analista, sem no entanto ter sido poupado de um início de certa forma desastroso. Ele conta que um de seus primeiros pacientes, com quem ele experimentou técnicas que se mostraram inadequadas, precisou ser internado. O desconsolo do médico era tão patente que o paciente procurou confortá-lo dizendo “Não se preocupe, Abe. Vou ficar bem”.


A persistência rendeu a Abram Kardiner uma longa e sólida carreira, em que procurou fazer a aproximação da psicanálise com a antropologia, tornou-se professor e publicou livros.


Além de revisitar sua análise com Freud, Kardiner procura fazer no livro – originalmente publicado em 1977 – um diagnóstico do estado atual da psicanálise, cujo prestígio ele avalia estar em declínio, e apontar o caminho que acha indispensável para reerguê-la. “Acredito que há apenas um futuro para a psicanálise, e que é o de uma disciplina científica fundamentada em observações empíricas e verificáveis”.

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Para atingir esse objetivo, ele recomenda, em síntese, “parar de estudar os seres humanos a partir do divã”, em favor de “ir a campo e estudar as crianças desde o nascimento em diante”. Outro “empreendimento” seria executar a primeira tarefa “não apenas em uma cultura, mas em muitas, para que possamos estabelecer uma base controlada para correlações e previsões”.


O “estudo dos padrões de adaptação social” seria o passo seguinte. E, por fim, a psicanálise deveria, segundo ele, assumir a “tarefa educacional” de “aprender a diagnosticar as doenças do nosso tempo e aquilo que está acontecendo na mente humana, numa cultura cujos padrões básicos estão se alterando a uma velocidade estrondosa”.


Kardiner não parecia muito otimista em relação ao futuro da psicanálise, assim como Freud, que, segundo as memórias do primeiro, receava que a psicanálise sucumbisse ao rótulo de uma “ciência judaica” e fosse para sempre considerada desimportante.


O fato de que “Minha análise com Freud - Reminiscências” continue sendo editado em 2024 talvez diga algo em contrário disso.


Ideias centrais

“Minha análise com Freud - Reminiscências” integra a coleção Histórias da Psicanálise, do selo paulista Quina, pelo qual já foram editados “Metas do desenvolvimento da psicanálise” (Otto Rank e Sándor Ferenczi); “Psicanálise das neuroses de guerra” (Freud, Ferenczi, Abraham Simmel e Jones) e “Escritos reunidos” (Ruth Mack Brunswick, com organização de Alexandre Socha).

 

O psiquiatra e psicanalista Rodrigo Lage Leite assina a orelha do livro de Abram Kardiner e destaca a oportunidade que ele oferece ao leitor de “acesso ao que se poderia chamar de ‘o infantil’ da própria psicanálise (...), ao frescor da irrupção de suas ideias mais centrais e geniais”.