Indiazinha e Duca habitam o mesmo corpo. Mais de uma vez, no entanto, a primeira incomodou a segunda. “A Indiazinha é muito além do tempo. Desvairada, impulsiva, sensual, sem limite. Mas, por isso mesmo, muito interessante.” Tanto por isso, Duca decidiu se distanciar dela. Foi desta maneira, na primeira (Duca) e na terceira pessoa (Indiazinha) que ela construiu suas memórias.
Com lançamento na noite desta quinta (7/3), no Bar Museu Clube da Esquina, a autobiografia “Histórias de outras esquinas”, de Duca Leal, dá à luz a uma personagem pouco conhecida, porém muito presente no cancioneiro do Clube. O prefácio é de Toninho Horta; o posfácio, de Raquel Leal, a filha caçula da autora.
Foi Indiazinha/Duca a inspiração para Márcio Borges escrever a letra de “Um girassol da cor do seu cabelo” (música de Lô), uma das canções mais populares do álbum “Clube da esquina” (1972). Foi com um vestido azul que ela se casou, em 1971, com Márcio Borges – inspiração para o verso “A terra azul da cor do seu vestido”.
Uma década mais tarde, com o fim da união (o primeiro, já que eles reatariam um pouco depois), foi também ela quem motivou Márcio a escrever “Vento de maio” (música de Telo Borges gravada por Lô em “A via-láctea”, de 1979).
“Queria deixar claro que esse livro não é sobre o Clube da Esquina, mas sobre a minha vida”, afirma Duca hoje, às vésperas de completar 69 anos (em 14 de abril). Mas não há como desvincular a vida dela do Clube, já que, mais do que qualquer outra figura feminina, ela esteve presente em momentos cruciais da trajetória do grupo de músicos que, a partir de Santa Tereza, ganhou o mundo.
Namoro com o poeta
Indiazinha tinha 15 anos quando conheceu o Poeta (como Márcio Borges é chamado no livro), na Belo Horizonte de 1970. Ele era nove anos mais velho. O namoro veio rápido, assim como o casamento, na Igreja da Pampulha, contrariando os desejos da noiva, que não queria nada religioso – mas entrou na igreja, ao lado do pai, ao som de “Eu sei que vou te amar” na voz de Milton Nascimento e com o violão de Lô.
Viveu aquele período intensamente. Morou com Márcio em um barracão nos fundos da casa da família Borges; se encontrou com Juscelino Kubitscheck na lendária viagem da trupe para Diamantina; mudou-se com o marido para o Rio, onde moraram no Jardim de Alah, quase esquina com Vieira Souto. O vizinho de baixo era Raul Seixas, de quem Indiazinha nunca gostou muito.
Todo este período é coberto pelas lembranças de Duca, entremeadas por registros dela. Escrevia um diário desde menina – começou aos 11 anos. Também tem poesia, letra de música, cartas de terceiros. O volume é também recheado de fotos. A narrativa vai até 1989, quando, findo o casamento (que lhe deu dois filhos) e o período dedicado à produção artística (ela produziu o álbum “Os Borges”, de 1980, em que reuniu sete dos 11 filhos de Maricota e Salomão), foi buscar outros ares.
Comenta que o universo do Clube era “masculino total”. “Quando fiz o disco dos Borges, a única mulher além de mim era a Solange, a irmã deles. Quando viajamos para Diamantina, quando fomos para Mar Azul (praia em Niterói onde foi gestado o álbum “Clube da Esquina”), era só eu de mulher. Como eu só estudava, se quisesse matar aula para fazer alguma coisa eu matava. Ou seja, estava mais disponível. Mas, para mim, era normal, fiz o que o coração queria que era estar perto do Marcinho.”
Comunidade espiritualista
Mais tarde, ela viveu em uma comunidade espiritualista em Visconde de Mauá, na Serra da Mantiqueira. Há três décadas, Duca está de volta a Minas – vive em um sítio na região de Betim. Casou-se novamente, teve outros dois filhos, trabalhou como massoterapeuta e bibliotecária – aposentou-se recentemente. Um livro estava nos planos há muitos anos, e a saga para escrever e publicar “Histórias de outras esquinas” foi tamanha que ela brinca que daria um novo volume.
Parte desta vivência de Duca foi vista no musical “Clube da Esquina – Os sonhos não envelhecem” (2022), dirigido por Dennis Carvalho. “Assisti sete vezes, e ali tive um papel importante.” Ela enviou o livro para Márcio, incluído inclusive na dedicatória, mas não sabe se ele leu. “Há uns sete anos ele foi na minha casa em Betim e um dos meninos comentou que a ‘mamãe estava escrevendo uma autobiografia’. Só me pediu para não pegar muito pesado com ele.”
“Ele foi a minha história, mas teve dor. Venho de uma família de classe média. Na minha casa, não existia cortar luz por falta de pagamento, faltar isto ou aquilo. A vida foi ficando ruim.” Mesmo assim, ela não carrega mágoas, somente uma grande frustração. “Na minha família, fazer faculdade era que nem cortar cabelo. Minha maior frustração foi não ter feito”, afirma.
TRECHO
“No apartamento debaixo morava Raul Seixas. De vez em quando, o Poeta passava por lá para fumar um. Ela não curtia muito a figura, achava-o muito louco, mas gostava de suas músicas. Numa tarde de sábado, chegou na casa deles o próprio, levando o Caetano que, com aquela sua simpatia ímpar, contava da alegria de ser pai e de como a Dedé estava curtindo amamentar o Moreno. Indiazinha ficou pensando em quando chegaria a hora dela ter seu filho.”
“HISTÓRIAS DE OUTRAS ESQUINAS”
Duca Leal
Editora CRV ( 406 págs.)
R$ 100
Lançamento nesta quinta (7/3), a partir das 19h, no Bar Museu Clube da Esquina, Rua Paraisópolis, 738, Santa Tereza.