Izabel Haddad e Douglas Garcia*
Especial para o EM
Uma mulher, Bella Baxter, protagonista de “Pobres criaturas”, de Yorgos Lanthimos, parece ter saído das histórias fantásticas de “Cidades invisíveis”, de Ítalo Calvino. Nesse livro, o italiano apresenta breves relatos de cidades imaginárias com insígnias de mulher, Pentesileia, Cecília, Leônia. Será pelos olhos de Bella que vamos conhecer o leitmotiv da era vitoriana, caminhando por Paris, Lisboa, Alexandria, Londres. Por meio de um mar de simbolismos, desde a estética do surrealismo até o steampunk, esse filme corta a vida com a lâmina da beleza.
Na primeira cena, Bella comete suicídio, grávida, numa ponte de Londres. Antes de saltar, encara o azul do rio, onde vai mergulhar seus olhos e vestido. É encontrada pelo médico Godwin Baxter, mistura de God com Darwin. Seu criador retira o cérebro do bebê de Bella e o transplanta nela, antes de ressuscitá -la com uma carga elétrica. A cena faz alusão ao clássico “Frankenstein”, de Mary Shelley. No caso do filme, o médico é o pobre monstro e sua criatura, a encarnação da beleza.
Os cenários parecem revelar que o filme será contato a partir do diletantismo de Bella. Pelos olhos da atriz Emma Stone, intérprete de Bella, vamos experimentar uma sinestesia: veremos os cheiros, sentiremos as cores, escutaremos as texturas dos tecidos bufantes dos vestidos. Tudo é uma explosão de sentidos quando ela experimenta pela primeira vez o absurdo do mundo.
Lanthimos encontra no recurso de lentes grande angulares e olho de peixe o que precisava para fazer saltar aos olhos do público o reflexo do desejo dessa mulher, que ao longo do filme se entrega aos prazeres do erotismo singular da sexualidade feminina. O cineasta faz uma crítica ao machismo e à forma como as mulheres que desejam para além dos homens são tratadas.
Bella sobrevive a violências simbólicas e reais: seu criador a prende em casa como parte da mobília, o amante possessivo arremessa seus livros no mar para que ela não deseje nada além dele, o ex-marido pretende extirpar seu clitóris. O contexto de um mundo vitoriano patriarcal é subvertido pela espontaneidade amoral de uma figura feminina que nos seduz com o deleite de seu universo sensível.
Uma das cenas icônicas do filme se passa na mesa de jantar. Bella, sempre ao alcance do olhar do “pai”, descobre, numa refeição solitária, que pode introduzir uma fruta na vagina para se masturbar. A partir daí, há uma sequência de cenas em que descobre os prazeres do corpo: comer, ouvir música, dançar. Cada deleite feminino ao longo da trama descortina ao espectador o que Simone de Beauvoir disse: “Uma mulher não nasce mulher, ela se torna”. Essa é a cena em torno da qual orbitam as outras: o nascimento de uma mulher por meio de seu próprio desejo.
O filme é ambientado na era vitoriana (1837-1901), época em que Freud escreve “Estudos sobre a histeria”. Tempo esse em que a medicina e o direito estavam às voltas com a higienização da sexualidade e o aprisionamento de mulheres que cometiam atos libidinosos e extraviados. Bella não é uma histérica, pois não repudia a sexualidade, pelo contrário; poderia ser considerada “uma mulher meio extraviada”, para utilizar a tese de Lacan.
CAMADA POÉTICA
Há ainda uma camada poética e filosófica no longa. A rica trama da fantasia arrebata como se estivéssemos num sonho criado por Dalí e Freud. Os desejos inconscientes vividos com um glimmer of hope de quem adormece feliz, amalgamados à estética de um quadro surrealista.
É pela fantasia que penetramos a alma das coisas. Ao ouvir uma música distante, imaginamos de quem é o corpo que a projeta. Ao vermos um quarto vazio, recriamos a imagem de quem o deixou. O filme expõe em linguagem fílmica o caráter de fantasia das coisas e de nosso eu. Há sempre uma membrana entre nós e os outros: a fantasia.
John Keats escreveu: “Deixe sempre a fantasia vagar, o prazer nunca está em casa”. Bella é movida pela fantasia que atravessa seu corpo ao mesmo tempo que a projeta inteiramente em direção ao outro e ao mundo. Essa entrega corporal ao que ela não conhece é fonte de um movimento de criação de si que se faz como aproximação e distanciamento. Bella poderia se perguntar, como o anjo de “Asas do desejo”: “Por que eu sou eu, e por que eu não sou você?”.
O primeiro impulso da personagem é sempre tocar, aceitar, aproximar. Seu corpo é vivido não como instrumento (“Eu tenho meu corpo”), mas como interioridade existencial (“Eu sou o meu corpo”). Isso faz com que ela seja sensível às convenções sociais que limitam sua expressividade. Ela reage energicamente a essas convenções, o que faz com que seu impulso de aproximação e assimilação tenha de se transmutar em distanciamento e rejeição – continuando a ser afirmativo da fantasia e da realidade de sua condição existencial.
A atmosfera de sonho de “Pobres criaturas” remete à poesia, à pintura e à música. Sua disposição imagética e sonora desfaz qualquer intenção realista, interpelando o espectador a fazer-se um pouco como Bella e imergir naquele mundo que só existe como imagem, transparência fugaz.
É assim que o filme mimetiza maravilhosamente o movimento de nossa existência. Com ele, aprendemos que somos todos “pobres criaturas”, feitos de palavras, gestos e sons, que vêm dos outros e que não podemos evitar que nos encontrem. E que, não obstante, a cada vez que respiramos, falamos ou tocamos os outros e o mundo, tudo se move e se altera de um modo imprevisível e maravilhoso.
*Izabel Haddad é psicanalista e professora de psicanálise na PUC Minas, doutora em teoria psicanalítica pela UFMG. Douglas Garcia é professor de filosofia na UFOP, doutor em filosofia pela UFMG.