O Sempre um Papo tem como premissa receber autores que estejam lançando um livro para discorrer sobre a obra. Não será bem assim nesta quinta-feira (14/3), quando o convidado é o escritor carioca radicado em Porto Alegre Jeferson Tenório. O mote da conversa é o seu “O avesso da pele” (2020), vencedor do Jabuti no ano seguinte, que tem sido alvo de censura em alguns estados brasileiros.
Há duas semanas, a diretora de uma escola gaúcha reclamou da adoção do livro em escolas públicas, com o argumento de que a obra descreve cenas de sexo e contém expressões de baixo calão, inadequadas para estudantes do ensino médio (entre 15 e 17 anos). O cerne de “O avesso da pele”, contudo, é a violência policial e o racismo, conforme diz Tenório. Políticos conservadores aproveitaram a queixa da diretora para pressionar seus estados a suspender o livro.
Vários municípios gaúchos anunciaram a remoção da obra, mas a Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul emitiu nota desautorizando a decisão. Escolas do Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul retiraram “O avesso da pele” de seus currículos. No caso deste último estado, o governador Eduardo Riedel (PSDB) anunciou o recolhimento imediato do livro.
"A literatura cumpre vários papéis. Penso que o principal deles é formar leitores. Minha escrita tende para isso, com uma linguagem mais simples, menos complexa, justamente para chegar ao leitor que não tem intimidade com livros”"
por Jeferson Tenório, escritor
“O avesso da pele” chegou às bibliotecas escolares no final de 2022, via Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), sistema do Ministério da Educação que seleciona e distribui gratuitamente livros didáticos. Segundo a pasta, “os livros aprovados passam a compor um catálogo no qual as escolas podem escolher, de forma democrática, as obras mais adequadas à sua realidade pedagógica”.
O tema que norteia a participação de Tenório no Sempre um Papo é “O avesso da censura: O papel da literatura em ambientes conservadores”. O autor observa que o livro foi selecionado pelo PNLD ainda no governo Bolsonaro e que, portanto, já está há um ano e meio integrado à rotina das escolas, ensejando trabalhos de interpretação, pesquisas e debates.
“A literatura cumpre vários papéis. Penso que o principal deles é formar leitores. Minha escrita tende para isso, com uma linguagem mais simples, menos complexa, justamente para chegar ao leitor que não tem intimidade com livros”, afirma o escritor. “Outro papel é formar pessoas com senso crítico, com consciência social e, no caso da minha obra, também uma consciência racial. E a literatura tem, ainda, o papel de desestabilizar esses ambientes conservadores, que tentam higienizar a expressão artística.”
Conversas profundas
Ele comenta que o máximo que lhe havia chegado eram relatos de pais de alunos que se incomodavam com o tema do livro – a violência policial –, considerando-o inadequado a adolescentes. Mas diz que os debates de que participou em escolas públicas renderam “conversas muito profundas”. O autor não se lembra de, em algum momento desde o lançamento do livro, a questão sexual ter sido colocada com a centralidade que agora insufla a censura.
O conteúdo sexual não chega a ser insignificante, conforme aponta, mas também não está ali como um elemento pensado para causar impacto, porque não se trata de um livo erótico. “Os palavrões e as frases ofensivas são uma representação de como a branquitude enxerga os corpos negros. Na verdade, são frases violentas, agressivas, mas quem pensa e profere aquilo é a branquitude baseada no racismo”, diz.
Ele avalia que o conteúdo sexual e o baixo calão são um subterfúgio usado pelo pensamento conservador para tentar escamotear as temáticas que realmente importam. “É uma estratégia do fascismo pegar questões sensíveis à sociedade – a liberação das drogas, o debate sobre o aborto, o tema da sexualidade – e colocar isso no centro, desviando o foco do que efetivamente precisa ser discutido, que, no caso do meu livro, é a violência policial, o racismo, a precariedade do ensino.”
Em sua opinião, para a diretora que fez o vídeo contra o livro, “não importa se não há estrutura na escola, se faltam professores; o grande problema é o palavrão, a cena de sexo”.
" “Os palavrões e as frases ofensivas (no livro) são uma representação de como a branquitude enxerga os corpos negros. Na verdade, são frases violentas, agressivas, mas quem pensa e profere aquilo é a branquitude baseada no racismo”"
por Jeferson Tenório, escritor
Desde quando começaram os ataques à obra, “O avesso da pele” teve aumento expressivo de vendas. “É um efeito colateral da censura, que historicamente acontece. Toda vez que um livro é proibido, impedido de circular, a curiosidade das pessoas é atiçada. Aconteceu, por exemplo, com 'Feliz ano novo', do Rubem Fonseca. Creio também que o movimento progressista entendeu que tem que haver uma resposta rápida, o que passa pela questão da comercialização”, diz.
Ele pondera, no entanto, que este não é o melhor caminho de divulgação de uma obra. “É importante entender que motivações levam as pessoas a conhecer um livro e é preocupante ter a censura como uma delas. Nesse sentido, a extrema direita tem sido mais eficiente em formar leitores do que os movimentos progressistas.”
DESAGRAVO
Criador do Sempre um Papo e mediador do debate, Afonso Borges diz que o encontro de hoje tem a marca da defesa da liberdade de expressão na criação literária e do expresso alinhamento das forças democráticas com o escritor. Ele pretende fazer um ato de desagravo. Haverá ainda leitura de trechos do livro por voluntários. Esta edição será transmitida ao vivo pelo canal do projeto no YouTube.
SEMPRE UM PAPO COM JEFERSON TENÓRIO
Com o tema "O avesso da censura: o papel da literatura em ambientes conservadores", nesta quinta-feira (14/3), às 19h30, no Teatro José Aparecido de Oliveira, da Biblioteca Pública Estadual (Praça da Liberdade, 21, Savassi). Entrada gratuita, sujeita à lotação do espaço.