Ninguém entendeu muito bem quando Jean-Luc Godard (1930-2022), à sua maneira sempre provocativa, disse que “A lista de Schindler” estava reabrindo Auschwitz. Isso faz 30 anos. Hoje a ideia é mais compreensível: o Holocausto virou uma espécie de gênero cinematográfico percorrido por filmes e séries.


O que foi um marco, o horror dos horrores, o imperdoável, o irrepetível agora pode ser desfrutado em doses menores ou maiores, conforme a situação, por espectadores do mundo inteiro, com direito a pipoca, Coca-Cola e umas olhadinhas no celular, se for o caso.

 




Nada contra, então, Nicholas Winton e sua vida. Trata-se de um homem exemplar, como mostra o filme britânico “Uma vida”. Esse homem inglês foi à Tchecoslováquia no momento em que os nazistas se preparavam para invadir o país e em que, portanto, um número enorme de judeus encontrava-se sob ameaça de detenção e morte.


Os riscos que ele correu e as dificuldades que enfrentou para salvar (com outros envolvidos na operação, diga-se) 669 crianças foram enormes. É justo até que esse trabalho seja conhecido por todos, e não apenas pela comenda que recebeu de Elizabeth II.


Exercícios de banalidade

 

Mas “Uma vida” tem uma série infindável de problemas, que começam, inclusive, pelo fato de o Holocausto e seus arredores terem sido vasculhados pelas câmeras o tempo todo, nos últimos 30 anos.


Não falemos dos enquadramentos sem graça. Eles podem até ter sido compensados por bons atores. Nem do corte insuportável de Anthony Hopkins (Winton idoso) que, ao mergulhar na piscina de sua casa, mergulha também em suas lembranças do passado - exercícios de banalidade.


Já a representação das crianças separadas das mães ao embarcarem nos trens (pais não aparecem, ou quase) cria um sentimento estranho: de repente, atentamos muito mais aos figurinos e penteados da reconstituição de época do que aos fatos, propriamente. A representação, antiquada, já não nos toca.

 


A insistência nas convenções do melodrama não para por aí. É preciso chegar até um programa de TV tipo Silvio Santos, com Winton comovido, plateia comovida, apresentadora idem. É quando Winton chora e nós podemos, com justa razão, também dar uma choradinha, enquanto o público o aplaude.


Mas não é pelas crianças salvas (ou pelas que não puderam ser salvas) que choramos ou pelo reconhecimento aos méritos de Winton que choramos. Trata-se de um encaminhamento do melodrama atual que produz esses momentos de comoção que pouco ou nada têm a ver com os eventos narrados.


O que resta como questão: o conhecimento geral de vidas cheias de méritos, como a de Nicholas Winton, ajudaria a evitar novos desastres humanitários? Já está visto que não. Seu exemplo serviria a outros homens igualmente íntegros? Winton é a prova de que homens íntegros não se movem por exemplos, mas por princípios.


Nesse sentido, “Uma vida” serve essencialmente para reforçar a ideia de que a infâmia do Holocausto tornou-se um filão a ser explorado comercialmente, como o faroeste ou a ficção científica. É moralmente deplorável e, talvez não por acaso, lembra certos procedimentos do pior cinema nazista, que consistem em chantagear o espectador em busca de reações emotivas que o arrebatem politicamente.


No caso, trata-se de mais um produto do bem-sucedido soft power britânico, mais feliz e íntegro em outros momentos.


Dito isso, é um filme que, ao menos do meio para o fim, serve a seu objetivo central, que é alimentar a culpa do espectador pelo pouco ou nada que fizemos na guerra, em outras guerras, ou no que for, pelo bem da humanidade.


“UMA VIDA – A HISTÓRIA DE NICHOLAS WINTON”
Reino Unido, 2023. Direção de James Hawes. Com Anthony Hopkins, Lena Olin e Helena Bonham Carter. Em cartaz em salas dos shoppings BH, Cidade, Diamond Mall, Boulevard, Pátio Savassi, Del Rey, Minas, ItaúPower, Contagem e Betim, além do UNA Cine Belas Artes.

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