SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Nem só de panela na cabeça são feitos os descendentes de Ziraldo. Claro que o Menino Maluquinho, nascido em outubro de 1980, tem seu lugar garantido como o personagem mais famoso do cartunista mineiro, morto aos 91 anos neste sábado (6/4), no Rio. Tanto que foi ele, o moleque travesso usando uma caçarola como chapéu, o escolhido para, na forma dum boneco gigante inflável, convidar o público para a exposição "Mundo Zira", em cartaz no CCBB carioca até maio.
Mas não há de ser pecado dizer que a fama não garante por si só também o posto de criação mais amada a este Maluquinho -o próprio Ziraldo o considerava "cult", algo reservado, quem sabe, aos adultos espertos fãs das crianças prodígio dos quadrinhos, como Mafalda e Lucy Van Pelt. Até mesmo o criador sabia que daquela mesma prancheta surgiram figuras mais queridas das infâncias.
Pegue A Turma do Pererê, por exemplo, criada em 1958 e publicada pela primeira vez na revista O Cruzeiro, em 1959, com o nome de "Pererê". Uma galera formada pelo Saci, sua namorada Boneca de Pixe, seus amigos indígenas Tininim e Tuiuiú, e a patota animal com uma onça branca, um jabuti, um macaco e um tatu.
Entre idas e vindas de editoras --em 1964, por exemplo, o regime militar esvaziou de publicações as bancas de jornal- e variações de tiragem ao longo dos quase 20 anos em que foram impressos, os quadrinhos da Turma do Pererê foram tão populares que se tornaram inclusive especial da TV Globo em 1983, um sinal importante de sucesso entre produções criativas dos anos 1970 e 1980.
A história mostrava o indígena Tininim exausto do mato e do ar puro, e decidido a trocar a vida na floresta pela sedutora existência numa metrópole. Galileu, a onça, convoca então os amigos da Mata do Fundão para uma reunião de emergência, na qual se decide que o Saci irá atrás do amigo na cidade grande.
Ziraldo imaginou, décadas antes da consciência ambiental que habita o coração da infância de hoje, o caos e a cobiça que uma onça-pintada despertaria ao circular num centro urbano. Ilustrou a dimensão da fauna e da flora nacionais, e a opôs à gravidade do desprezo por sua preservação, questão que à época era circunscrita apenas à aflição de minguados ecologistas.
O especial de TV virou disco pela Som Livre, ainda em 1983, com letras escritas por gente graúda como Guilherme Arantes, Fagner e Ivan Lins, e músicas gravadas por Gal Costa, Zezé Motta, Luiz Melodia, entre outros. Vendeu milhares de cópias e se tornou frisson nas vitrolas, unindo em casa adultos e crianças como poucos sabem fazer 40 anos depois.
O debut literário "Flicts" -que também ganhou trilha sonora nos mesmos anos 1980, assinada pelo próprio Ziraldo junto de Sérgio Ricardo-, por sua vez, talvez tenha feito mais pelas crianças deslocadas do que qualquer outro livro infantojuvenil até hoje conseguiu.
A história, escrita em 1969, estreia de Ziraldo neste segmento literário, mostra a cor meio bege e muito triste que ninguém queria por perto por ser "feia" e "sem graça", já que não é tão forte quanto o vermelho, nem tão imenso quanto o amarelo ou pacífico quanto o azul.
Numa crítica no jornal, o escritor Carlos Drummond de Andrade se derramou diante da poesia de "Flicts": "O conto contado por Ziraldo só merece um adjetivo, infelizmente desmoralizado: 'maravilhoso'. Não há outro, e sinto a pobreza do meu cartuchame verbal, para definir 'Flicts'. Mas exatamente nisso está uma das maravilhas de 'Flicts': não carece de definição. É".
Em 1986, nasceu de Ziraldo o Menino Marrom, numa delicadeza de traço que trazia na capa do livro um garoto lindo, com olhos gigantes e dum realismo apaixonante. As perguntas levantadas pela curiosidade do menino giravam em torno da diversidade de cores da pele e histórias de vida na infância.
Para tanto, Ziraldo contrapõe a existência do protagonista à do Menino Cor-de-Rosa, num movimento arriscado que anos depois levantaria críticas a uma suposta postura racista do autor. Ana Maria Gonçalves, por exemplo, autora do incensado "Um Defeito de Cor" (2006), publicou em 2011 uma carta aberta a Ziraldo em que apontava os problemas que vê em "O Menino Marrom".
"O seu texto nos ensina que é assim, sem ódio, que se doma e se educa para que cada um saiba o seu lugar, com docilidade e resignação: 'Meu querido amigo: Eu andava muito triste ultimamente, pois estava sentindo muito sua falta. Agora estou mais contente porque acabo de descobrir uma coisa importante: preto é, apenas, a ausência do branco' (ZIRALDO, 1986, p.30)", escreveu Gonçalves no documento.
"A gente se acostuma, Ziraldo. Como o seu menino marrom se acostumou com as sandálias de dedo (...). O menino marrom, embora seja a figura simpática e esperta e bonita que você descreve, estava acostumado e fadado a ser pé-de-chinelo, em comparação ao seu amigo menino cor-de-rosa (...). O menino marrom, ao crescer, talvez virasse marginal, fado de muito negro", segue a escritora na carta aberta.
Em tempos de revisionismo e cancelamento da literatura, incluindo a infantojuvenil, é interessante pensar que a partida do premiado autor possa encorajar a leitura contextualizada de Ziraldo, a exemplo do que se pode (e deve?) fazer com tantos autores. Responsáveis e educadores têm, agora, a oportunidade de apresentar às crianças a obra de Ziraldo e conduzir, com elas, o debate sobre pontos como os levantados por Ana Maria Gonçalves e outros críticos.
Assim, não se corre o risco de relegar ao esquecimento a irreverência e encanto de Maluquinhos, Pererês e Flicts, ou de trechos de rara sensibilidade sobre a infância como este de "O Menino Marrom": "Menino é mais criativo do que adulto, sabe por quê? Porque adulto já viveu muito e já aprendeu dos outros. Menino tem que inventar enquanto não aprende (...) Só criança é capaz de observar as coisas com os olhos de primeira vez."