O posicionamento das câmeras dá ao espectador a sensação de observação prolongada de algo que está se desenvolvendo. É como se, feito caçadores que ficam na mata observando por muito tempo o comportamento da natureza, estivéssemos acompanhando o desenrolar da ação sem saber muito bem aonde isso vai dar.
No foco da câmera, no entanto, não há animais ou plantas, e sim a atriz e performer mineira Viviane de Cássia Ferreira despindo-se de toda vaidade para contar sua experiência com a arte e a “loucura”.
Trata-se do documentário “As linhas da minha mão”, de João Dumans, que tem sessão de pré-estreia nesta terça-feira (9/4), seguida de bate-papo com o diretor, no Centro Cultural Unimed-BH Minas.
Vencedor da Mostra Aurora na edição 2023 da Mostra de Cinema de Tiradentes, “As linhas da minha mão” traça um perfil fragmentário da atriz belo-horizontina, passando por seus trabalhos no teatro, sua residência criativa na Casa Breve, realizada pelo Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados (grupo formado por cidadãos em sofrimento mental que investiga o papel da “loucura” na produção cultural), e, claro, sua experiência com a “loucura”.
Há alguns anos, ela foi diagnosticada com transtorno afetivo bipolar e se refere à condição como “loucura”.
Narrativa fragmentada
A narrativa não é linear. Não há entrevistas ou encadeamento cronológico nas histórias contadas por Viviane. Os atos (são sete, ao todo) são entrecortados por depoimentos e performances da atriz.
“Eu queria que o filme fosse em fragmentos, porque a Vivi me aparecia em fragmentos. Em fragmentos de mundos diferentes, de mundos que eu não conhecia, de experiências que ela atravessou e das quais eu só conhecia pedaços”, diz Dumans. “Para mim, o filme tinha que ter esse caráter fragmentário para fazer justiça à multiplicidade desses seres que ela encarna.”
Nada disso foi planejado. A ideia inicial de Dumans era fazer um filme ficcional tendo Viviane no elenco, mas, com a pandemia, o projeto acabou suspenso. Os dois, no entanto, mantiveram contato e daí nasceu a ideia de produzir um documentário sobre a atriz e performer.
“Entendi que é possível contar histórias no cinema que sejam construídas com a contribuição radical
da presença e da inteligência dos atores e das atrizes, sem ser um cinema orientado em relação a uma forma de escrever ou de decupar”João Dumans, diretor
Viviane abraçou a sugestão, mas ficou com receio. “Será que alguém se interessaria por (um filme de) uma mulher doida falando de si mesma?”, lembra ela, entre risos. “Mas a confiança no João e a alegria do encontro com ele me fizeram aceitar prontamente a proposta. Ele disse que não teria roteirista, que seria eu mesma contando minhas próprias histórias”, conta a atriz.
A espontaneidade é marca registrada da produção. A começar pelo orçamento – de R$ 8 mil, em parte obtidos via Lei Aldir Blanc, como verba para licenciamento. Também foram espontâneas as tomadas do diretor. Nas primeiras cenas, por exemplo, quando Viviane e o primo Leandro Acácio estão numa espécie de sítio lendo um texto de Nietzsche, os dois não sabiam que estavam sendo filmados.
Dumans aproveitou o momento íntimo dos dois, pegou a câmera e disse que precisava fazer alguns testes, e que, portanto, Viviane e Leandro poderiam continuar o que estavam fazendo.
“Achei que ele estivesse vendo se o Leandro era fotogênico ou essas coisas de enquadramento… Sei lá! Só depois é que ficamos sabendo que ele tinha gravado e que as cenas entrariam no filme”, conta Viviane.
Conforme aponta o diretor, “As linhas da minha mão” – assim como seus filmes anteriores, como o curta "Todo mundo tem sua cachaça" e o longa "Arábia", em que dividiu a direção com Affonso Uchoa – abordam o tempo atual e questões que ele julga importantes para o país. Seus personagens, portanto, não falam propriamente de si mesmos, mas refletem um contexto mais amplo.
“Chegamos a fazer algumas filmagens daquele filme ficcional, que tinha sido a ideia inicial, mas depois, quando propus fazer um documentário sobre ela, eu achava que a produção documental estava mais ao nosso alcance naquele momento e que havia coisas que eu sentia e que estávamos vivendo muito mais urgentes e imediatas”, conta o diretor, referindo-se ao contexto pandêmico em que o filme foi rodado e no qual a saúde mental foi negligenciada.
A experiência de rodar o documentário fez Dumans ter outra percepção sobre cinema. “Entendi que o cinema pode ser um jogo e que há várias formas de criar que fazem com que as pessoas tenham prazer de participar. E que, além disso, é possível contar histórias no cinema que sejam construídas com a contribuição radical da presença e da inteligência dos atores e das atrizes, sem ser um cinema orientado em relação a uma forma de escrever ou de decupar. E é nesse lugar que eu me sinto à vontade e feliz criando”, afirma.
"AS LINHAS DA MINHA MÃO"
(Brasil, 2023, 108 min.). Direção: João Dumans. Com Viviane de Cássia Ferreira. Documentário. Sessão única nesta terça-feira (9/4), às 19h, no Centro Cultural Unimed-BH Minas (Rua da Bahia, 2.244, Lourdes). Após a exibição, bate-papo com o diretor. Ingressos à venda por R$ 12 (inteira) e R$ 6 (meia), na bilheteria ou pelo site do MTC.