Já faz muito tempo que o clichê “filmar o infilmável” persegue Luiz Fernando Carvalho. Mais de 20 anos, na verdade, quando ele, então um dos mais prestigiados diretores da Globo, ousou fazer sua estreia cinematográfica com “Lavoura arcaica” (2001), longa criado a partir do primeiro romance de Raduan Nassar, lançado em 1975.
Carvalho trabalhou muitíssimo nas duas últimas décadas, fazendo novelas (“Velho Chico”, 2016), séries (“Hoje é dia de Maria”, 2005; “Capitu”, 2008; “Dois irmãos”, 2017) e especiais de TV (“Alexandre e outros heróis”, 2013). O ano de 2017 traz dois marcos em sua trajetória: ele deixou a Globo e finalmente deu início à produção daquele que veio a se tornar seu segundo longa, “A paixão segundo G.H.”, em cartaz às 20h30, na Sala 2 do UNA Cine Belas Artes.
“Não importa se o texto é uma prosa mais poética, se é verso, peça ou romance. A partir do momento em que sou atravessado (pelo texto), ele, evidentemente, ganha uma visualidade. E é isso que o torna filmável. Mas essa classificação já coloca uma questão: quer dizer que existem coisas que são filmáveis e infilmáveis? Não acredito em classificações. Sigo meus afetos”, ele diz.
Educação existencial
Lançado há exatos 60 anos, “A paixão segundo G.H.” é o quinto romance de Clarice Lispector (1920-1977). Grosso modo, acompanha o relato da mulher que, após perder a empregada, encontra uma barata ao tentar limpar o quarto. O livro é escrito como um longo monólogo, permeado pelos fluxos de consciência que marcam a obra clariceana. “Um romance de educação existencial”, analisou o crítico e professor Alfredo Bosi.
No cinema, G.H. é interpretada por Maria Fernanda Cândido, pela sexta vez dirigida por Carvalho. Ainda que o prelúdio da história tenha sido em 2017, a produção, efetivamente, teve início em maio de 2018. Foi um ano de preparação, com 15 dias de filmagem (entre o final de outubro e o início de novembro daquele ano).
“Estou sempre traduzindo a Maria Fernanda ao mesmo tempo em que estou traduzindo G.H.. E ela também está me dando a percepção dela. Minha relação com ela é de cumplicidade, confiança e investigação dos nossos ofícios”, afirma Carvalho, que considera a atriz “coautora” do longa.
“A dinâmica no set era muito simbiótica, muito próxima. O Luiz fez a câmera do filme, então ele estava atrás da lente a 40 centímetros do meu rosto. Havia muita proximidade com outros elementos da equipe técnica. Me lembro de escutar a respiração da pessoa que estava fazendo o som, da assistente de direção. Foi algo muito íntimo”, diz Maria Fernanda, que acha G.H. seu personagem mais desafiador.
A atriz está em cena praticamente o tempo todo, com uma câmera que desbrava suas expressões de forma quase voyeurística. Palavra (Carvalho, que divide o roteiro com Melina Dalboni, não fala em adaptação, nunca gostou do termo) e imagem caminham lado a lado.
“Reivindico a palavra como um elemento fundamental na constituição da linguagem cinematográfica. Se essa literatura me afetou, dou volume a essa alteridade. O encontro dessas duas potências (palavra e imagem) produz certo atrito, uma relação amorosa, uma tensão. Seja o que for, o fruto disso é uma terceira coisa, inominável, mas que é o filme”, acrescenta Carvalho.
O encontro de G.H. com a barata, e o impacto que isso gera na personagem, tem várias possibilidades de tradução. Para o cineasta, a barata “é um portal aberto onde vão ser projetadas dezenas de leituras”. Remete tanto à luta de classes e ao racismo (a empregada é interpretada pela guineense Samira Nancassa, Miss África Brasil em 2018), quanto ao imundo do mundo.
“Ela recebe várias leituras, inclusive religiosa. Ora ela é Deus, ora é a própria G.H. lidando consigo mesma. A pessoa que ler o romance ou ver o filme e parar na barata realmente não está pronta para essa experiência”, continua Luiz Fernando Carvalho.
Obras de arte
Tudo foi filmado em um magnífico apartamento na orla de Copacabana que Carvalho descobriu depois de muita pesquisa. Como o ambiente é o Rio de Janeiro de 1964, o cenário é de época. Foram 15 dias de filmagem porque o imóvel estava em reformas, interrompidas para que a produção pudesse localizá-lo como um local da elite carioca da época. O espectador não vai deixar de notar as paredes cheias de obras de arte, de Djanira e Volpi, entre outros grandes nomes da arte moderna brasileira.
Tudo empréstimo, diz Carvalho, lembrando que “A paixão segundo G.H.” é um filme de baixo orçamento com verba de edital público de 2014, ainda do Governo Dilma Rousseff. “Sou um cineasta amador, assim como Clarice era uma escritora amadora. Só faço por amor. Gosto de me encaixar nesse espaço, porque ele me garante a liberdade de criação”, conclui.
Diário de bordo
Assim como ocorreu com “Lavoura arcaica”, a chegada de “A paixão segundo G.H.” aos cinemas é acompanhada de um livro. Escrito pela roteirista Melina Dalboni, Diário de um filme” (Rocco, 344 páginas; R$ 99,90 o livro e R$ 49,90 o e-book) mergulha no processo criativo da produção.
“A atriz por conta própria vai trocando de roupa, com peças da mala que trouxe de casa, e aprimora a própria maquiagem conforme o diretor conduz o teste como se fosse um dia de filmagem”, escreve Melina.
A obra ainda traz fotos de cena, anotações do diretor e textos de especialistas (Nádia Battella Gotlib, José Miguel Wisnik e Yudith Rosenbaum, entre outros) que participaram das oficinas realizadas durante a preparação para o filme.