Instalação escultórica reproduz o espaço em que africanos escravizados eram confinados nos navios negreiros -  (crédito: Leandro Couri/EM/D.A Press)

Instalação escultórica reproduz o espaço em que africanos escravizados eram confinados nos navios negreiros

crédito: Leandro Couri/EM/D.A Press

“Não podemos virar as costas e ir embora”, afirma Grada Kilomba a respeito de “O barco” (2021), obra que chegou ao Brasil para ocupar, pelos próximos dois anos, a Galeria Galpão, em Inhotim. Não só não podemos – também não conseguimos.

 


O coro gospel de 14 vozes e a percussão do trio Paulino Pina, Mick e Marta Trovoada continuam ecoando muito depois de terminada a performance. “Um barco, um porão/ Um porão, uma carga/ Uma carga, uma história”, os três primeiros dos 18 versos do poema “O barco”, ganham vida em cena. Voz, corpo (dos bailarinos David Amado e Camilla Damião, a Eunice do filme “Marte Um”), dor, choro, memória versus esquecimento.

 

 


“Objeto vivo” é como Kilomba define a obra que, pela primeira vez, está sendo apresentada no país. Com curadoria de Júlia Rebouças e Marília Loureiro, respectivamente diretora artística e curadora de Inhotim, a instalação escultórica que domina a galeria, na parte alta do parque, é uma das camadas do trabalho. A outra é a performance, que ganha neste domingo (14/4), às 14h, a única exibição aberta ao público, por ora.

 

Cantores e musicistas fazem performance com a artista Grada Kilomba em Inhotim

Cantores e musicistas oriundos de ex-colônias portuguesas se juntaram a Grada Kilomba em performance que será repetida às 14h deste domingo (14/4)

Leandro Couri/EM/D.A Press

 


Para o lançamento, a artista portuguesa radicada em Berlim trouxe para Minas Gerais o grupo de cantores e musicistas portugueses oriundos de ex-colônias. Retorna ainda este ano a Inhotim para trabalhar com artistas da região de Brumadinho e reeditar, com eles, a performance.

 

Memória e raça

 

Escritora e artista interdisciplinar, Grada Kilomba, aos 56 anos, tem obra que transita entre a academia e a atividade artística. Seus temas são memória, raça, gênero e pós-colonialismo. Muito celebrada no Brasil, teve sua primeira individual no país em 2019, na Pinacoteca de São Paulo.

 


No mesmo ano, tornou-se a autora mais vendida da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), onde lançou “Memórias da plantação” (Cobogó). No ano passado, foi uma das curadoras da Bienal de Arte de São Paulo.

 

“O barco” remonta o tráfico de pessoas escravizadas da África, processo iniciado por Portugal na primeira metade do século 15. “Os mesmos barcos continuam, hoje, a cair no fundo do oceano, com os mesmos corpos. Me interessa pesquisar a arqueologia da nossa existência”, afirmou a artista em encontro com a imprensa.

 

Leia também: Inhotim abre sua primeira mostra dedicada a Paulo Nazareth

 


Lançada há três anos no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT) de Lisboa, “O barco” reúne 134 blocos de madeira queimada, cuja disposição desenha o fundo de uma embarcação. Dezoito destas peças, justamente as que estão na área central, trazem os versos do poema homônimo, gravados em dourado em seis línguas: iorubá, kimbundu, crioulo cabo-verdiano, português, inglês e árabe.

 

Artista plástica portuguesa Grada Kilomba

Grada Kilomba recriou com 134 blocos de madeira queimada o fundo de embarcações portuguesas que levaram escravizados da África para o mundo

Leandro Couri/EM/D.A Press

 

Queima performativa

 


A confecção da obra demandou muita pesquisa. “Começou pela própria madeira para contar essa história, pois escolhemos as de reflorestamento e aquelas que não eram mais utilizadas. A queima é quase performativa, pois ao ser queimada pelo fogo, a madeira perde sua própria ‘pele’. E cada pedaço tem uma ‘pele’ única, como as próprias pessoas”, explica.

 


Uma vez que cada pedaço ficou do tamanho e da textura adequados, os versos foram pintados a mão. Foram várias semanas no processo. “Todas as minhas obras demandam trabalho físico, dedicação”, comentou Kilomba.

 


Os blocos estão postados rentes ao chão. “A arquitetura é muito minuciosa, porque mostra exatamente como os corpos das pessoas africanas eram acomodados no fundo dos barcos. Cada uma tinha cerca de 20cm do espaço em que estava deitada. Estamos a falar de crianças, de mulheres, de pessoas. É quase incompreensível que durante centenas de anos isto foi legal nos impérios europeus.”

 


Para ela, a obra traz questões que permanecem atuais. “Como pudemos apagar uma das mais horrendas histórias da humanidade, algo que normalmente não está representado no espaço público? Qual a importância de contar a história propriamente? Como artista, me interessa entrar no inconsciente e romper com as narrativas que continuam falando que o barco é metáfora de glória, aventura, força. Com ‘O barco’, pretendo levantar questões. Não estou a dar respostas, mas a criar perguntas”, finalizou Kilomba. 

 

 

Versos de poema, em letras douradas, foram traduzidos para iorubá, kimbundu, crioulo cabo-verdiano, português, inglês e árabe

Versos de poema, em letras douradas, foram traduzidos para iorubá, kimbundu, crioulo cabo-verdiano, português, inglês e árabe

Leandro Couri/EM/D.A Press

 

POEMA "O BARCO"

De Grada Kilomba

 

Um barco, um porão


Um porão, uma carga


Uma carga, uma história


Uma história, uma peça


Uma peça, uma vida


Uma vida, um corpo


Um corpo, uma pessoa


Uma pessoa, um ser


Um ser, uma alma


Uma alma, uma memória


Uma memória, um esquecimento


Um esquecimento, uma ferida


Uma ferida, uma morte


Uma morte, uma dor


Uma dor, uma revolução


Uma revolução, uma igualdade


Uma igualdade, um afeto


Um afeto, a humanidade 

 

Em Inhotim

 

“Um barco”, de Grada Kilomba, na Galeria Galpão. Neste domingo (14/4), às 14h, será realizada performance da artista com cantores, músicos e bailarinos. Os ingressos devem ser retirados a partir das 13h na própria galeria. Localizado em Brumadinho, a 60km de Belo Horizonte, Inhotim está aberto de quarta a sexta, das 9h30 às 16h30, e aos fins de semana e feriados, das 9h30 às 17h30. Ingressos: R$ 50 e R$ 25. Entrada franca às quartas-feiras e no último domingo de cada mês. Informações: wwwinhotimorgbr