Casinhas pictóricas em rochedos às margens do Mediterrâneo são banhadas de uma decadência tipicamente napolitana, feita de paredes centenárias caindo aos pedaços e santas descascadas espalhadas por toda a parte. A beleza avassaladora da Costa Amalfitana, na Itália, é o cenário perfeito para os crimes de Tom Ripley.

 

O vilão metamorfo, criado em 1955 pela escritora Patricia Highsmith, falsifica assinaturas, finge ser quem não é e até mata para chegar onde quer, enganando todos a sua volta. Ripley se tornou um ícone atemporal da ficção americana, saindo dos livros para conquistar as telas múltiplas vezes – mais do que isso, foi um dois raros personagens LGBT a não ter seu arco premeditado pela homofobia, com condenações à amargura ou morte sem contexto.

 



 

O romance "O talentoso Ripley" já deu vida a dois filmes, "O sol por testemunha", com Alain Delon, e o longa homônimo que eternizou, em 1999, Matt Damon como Tom Ripley e Jude Law como Dickie.

 

Final feliz

 

Highsmith escreveu também "Strangers on a train" (1950), levado às telonas por Alfred Hitchcock como "Pacto sinistro", e "The price of salt", publicado em 1952 sob pseudônimo. O livro foi pioneiro na literatura por narrar um romance entre duas mulheres com final feliz, e virou o filme "Carol" pelas mãos de Todd Haynes, em 2015, estrelado por Cate Blanchett e Rooney Mara como casal.

 

Agora, Tom Ripley é encarnado por Andrew Scott em uma adaptação da Netflix que, filmada quase toda em branco e preto, confere aura noir à trama que combina com os charmes do personagem e da costa italiana. A escolha do ator britânico acontece depois de seu sucesso como padre sensual em "Fleabag", drama cômico de Phoebe Waller-Bridge, e de sua interpretação melancólica em "Todos nós desconhecidos", romance gay que, ao lado do indicado ao Oscar "Vidas passadas", faz uma reflexão dolorosa sobre as relações amorosas.

 

O Ripley de Scott é desajeitado no primeiro contato com Dickie, o playboy que vive na Itália às custas do pai. A trama, como no livro de Highsmith, começa quando o empresário o confunde com um amigo do filho se propõe a bancar a sua viagem a Itália, para que ele convença Dickie a voltar para os Estados Unidos.

 

Os passeios de barco, o quadro de Picasso na sala e a falta de noção dos amigos mimados de Dickie parecem despertar desprezo em Ripley, dando até certa comicidade à série Ao mesmo tempo, a riqueza e o prestígio social de Dickie, o namorado da bela Marge (Dakota Flanning), é o que Ripley mais deseja – e está convencido a conquistar, custe o que custar.

 

O mundo glamouroso de Marge (Dakota Flanning) e do playboy Dickie (Johnny Flynn) é cobiçado por Tom Ripley (Andrew Scott)

Netflix/divulgação

 

"Não acho que ele é vilão ou psicopata, acho que ele não conseguiria ser apenas vilanesco por muito tempo. Não quero diagnosticar nenhum traço seu. Há algo nele que não é possível entender completamente" diz Andrew Scott.

 

O ator se esforçou para evitar repetir atuações anteriores do personagem. "Se você entende quais são os pensamentos (de Tom Ripley), acho que é possível entender seus motivos, e então seus sentimentos."

 

 

Criadora e criatura

 

Mas se Ripley quer ser ou substituir Dickie, é apaixonado pelo playboy na mesma medida. Os sentimentos perturbados do protagonista espelham, de alguma forma, a vida da própria Patricia Highsmith, que experienciou a dura realidade de ser homossexual nas décadas de 1940 e 1950, quando ser lésbica era associado ao crime e a doença.

 

Ainda que não tenha sido perversa como sua criatura, Highsmith viveu mergulhada em controvérsias. Em seus diários, relatou relacionamentos com múltiplas amantes, geralmente conturbados e por vezes violentos.

 

Se amava mulheres na cama, fora dela costumava estar na companhia de homens, e pessoas próximas relataram seu prazer em gerar desconforto social com comentários maliciosos. No fim da vida, ficou marcada pelo antissemitismo.

 

A escritora Patricia Highsmith emprestou ao personagem Tom Ripley vários aspectos de sua própria personalidade

BBC/reprodução

 

Ódio e lesmas

 

Assim como Tom Ripley, com quem dizia se identificar, Highsmith costumava se relacionar com mulheres ricas e, em seus diários, fantasiava constantemente, misturando realidade e ficção. Depois de uma infância difícil, desenvolveu depressão e alcoolismo na vida adulta, sentia ódio de tudo e todos, preferindo isolar-se com seus gatos e lesmas – bichos pelos quais era obcecada.

 

Viveu a maior parte da vida na Europa, em rejeição ao sonho americano, e chegou a desenhar as paisagens italianas onde Ripley cometeria assassinatos apaixonados.

 

A biografia da autora talvez ajude a explicar os personagens que almejam desesperadamente romper com as amarras sociais, às vezes, como no caso de Ripley, buscando a libertação pela desinibição de seus mais perversos desejos. Tampouco é estranho para pessoas LGBT precisarem fingir algo que não são, como a própria Highsmith fez no começo da carreira.

 

 

Sexo e rejeição

 

Se literatura e cinema são artes narrativas, suspenses carregados de emoções dramáticas, ambientados em lugares glamourosos e repletos de tensão sexual, parecem ser a fórmula certa do sucesso em ambos os formatos. E, apesar de seus atos horríveis, Ripley sofre pelo amor não correspondido e pela rejeição da sociedade.

 

Contrariando uma história triste, porém, ele escolhe revidar as crueldades que lhe foram impostas de forma estranhamente charmosa, pronto para abocanhar o mundo da elite que tudo tem sem nada fazer. E conquista, assim, a torcida do público, o seu maior triunfo.

 

"RIPLEY"

Direção de Steven Zaillian. Com Andrew Scott, Dakota Fanning e Johnny Flynn. Série com oito episódios disponível na Netflix.

 

 

 


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