Ziraldo não era deste planeta. Mesmo. Prova disso é sua obra-prima Flicts (1969), clássico da literatura infantil brasileira, a história de uma cor em busca de seu lugar neste mundo. Rejeitada, ela se redescobre no poético satélite da Terra. Primeiro homem a pisar na Lua, o astronauta Neil Armstrong cravou, ao visitar o Brasil: "A Lua é Flicts".


Tudo começou por causa de uma foto da Terra vista da Lua. Ziraldo matutou, matutou, até resgatar a interjeição flicts de uma antiga história da Supermãe. O livro chamou a atenção tanto pela ousada concepção gráfica quanto pela interação imagem/texto, apontou a mestre em artes visuais Claudia Cascarelli em uma dissertação de mestrado dedicada ao mineiro.

 

Maurício de Souza sobre Ziraldo'perdi um irmão'

 

 

Flicts fala de exclusão, do mundo infantil e de, certa forma, de política. Nas edições lançadas até 1984, a bandeira do Reino Unido ilustrava frase relativa a "países mais bonitos". Lançado no auge da ditadura militar, a Bandeira Nacional não pertencia ao povo.

 



 

"Ninguém podia amar a bandeira do Brasil naquela época", contou Ziraldo. "Tínhamos que respeitá-la. E, aí, nós tínhamos medo de um pai severo, que obriga o outro a que o respeite em troca de gritos e chineladas." Só a partir da edição de 1985 aparecem lá o verde, amarelo e azul. O livro deu origem a várias peças infantis – em 2010, Wilson Oliveira dirigiu uma das versões encenadas em BH.

 

H MAIÚSCULO

 

Desenhista, caricaturista, cartunista, ilustrador, jornalista e escritor, o mineiro de Caratinga era artista reconhecido internacionalmente. Ao falar de sua geração à revista Cult, revelou: "Não gostávamos de ser chamados de caricaturistas, mas de desenhistas de Humor. Humor com H maiúsculo".

 

Comportamento, política, o mundo das crianças – nada escapou à verve de Ziraldo. Menino Maluquinho, seu personagem mais popular, é um "subversivo" nestes dias de hoje, em que as crianças mal se levantam do sofá, olhos grudados na telinha. Bente-altas, carrinho de rolimã e rouba-bandeira – além da inseparável panela na cabeça – eram as armas daquele garoto para enfrentar a separação dos pais. Não é à toa que o personagem conquistou plateias no cinema e no teatro.

 

Mineirinho, o Comequieto – HQ para adultos – expressava o machismo nacional nas páginas da revista masculina Playboy, para horror das feministas. E Supermãe – instalada na revista feminina Claudia – celebrava a cuidadosa rainha do lar.

 

 

Linha de frente de O Pasquim, jornal nanico que fez do humor uma arma contra a ditadura militar – ao lado de Jaguar, Millôr Fernandes, Tarso de Castro e Sérgio Cabral, Henfil, Paulo Francis e Sergio Augusto, entre outros –, Ziraldo foi preso logo depois da decretação do AI-5, em dezembro de 1968, e levado para o Forte de Copacabana.

 

Certa vez, a polícia levou toda a equipe do semanário humorístico. Mas o jornal noticiou: "Enfim um Pasquim totalmente automático: sem o Ziraldo, sem o Jaguar, sem o Tarso, sem o Francis, sem o Millôr, sem o Flávio, sem o Sérgio, sem o Fortuna, sem o Garcez, sem a redação, sem a contabilidade, sem a gerência e sem caixa."

  

TARZAN

 

Artista gráfico respeitado, Ziraldo dizia que ele e sua geração eram crias de nomes emblemáticos do humor internacional – Steinberg, Ronald Searle e André François. "Queríamos fazer humor, mas desenhar melhor do que o Aldemir Martins. E desenhávamos muito bem", declarou. Criança, era fã de Tarzan, Super-Homem, Capitão América e Fantasma. E leitor voraz de Tesouro da juventude.

 

Ziraldo trabalhou em agências de publicidade. Publicou um livro com Carlos Drummond de Andrade, O pipoqueiro da esquina (1981), em que ilustrou pequenos chistes do poeta. Chargista respeitado, revelou que os livros para crianças lhe deram a maior recompensa profissional. "Muita gente acha que sou só um autor infantil", admitiu.

 

Em depoimento à Enciclopédia Itaú Cultural, o historiador Herman Lima comenta que o mineiro "integra o grupo de artistas cujo trabalho sucede, na imprensa ilustrada do Brasil, ao grupo dos que se dedicam à caricatura política ou pessoal, desde que esse gênero perde força durante o Estado Novo, com as restrições impostas pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP)".

 

Por sua vez, o pesquisador Gilberto Maringoni destaca a relação de suas obras, assim como as de Millôr Fernandes e Fortuna, entre outros, com a produção dos cartunistas europeus do pós-guerra.


Autor do livro Caricaturistas brasileiros: 1836-2001, o historiador Pedro Corrêa do Lago disse que Ziraldo é, dos caricaturistas brasileiros surgidos na segunda metade do século 20, "aquele cujo desenho se torna mais popular e cujo traço é talvez o mais reconhecível dos artistas de sua geração."

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