Pai do ‘Menino Maluquinho’, Ziraldo moldou gerações de leitores brasileiros desde a alfabetização. O trabalho do escritor e cartunista falecido aos 91 anos neste sábado (6/4), no entanto, não se limita ao universo infantil. O talento do mineiro de Caratinga preencheu as páginas de importantes jornais do país e foi no jornalismo que seu traço passou a desenhar uma história de criatividade, coragem e compromisso com a democracia. O autor foi um dos fundadores do semanário “O Pasquim”, um dos mais notáveis esforços editoriais contra a ditadura militar, foi perseguido e preso pelo regime e jamais perdeu a veia criativa e inquieta, como mostram empreitadas como a criação da revista “Palavra”, já no fim da década de 1990.

 

A história de Ziraldo com o jornalismo se inicia ainda nos anos 1950, quando o cartunista iniciou sua jornada em publicações como a Folha da Manhã (atual Folha de São Paulo),na revista O Cruzeiro e no Jornal do Brasil. Na década seguinte, obteve seu primeiro grande sucesso comercial com o lançamento da “Turma do Pererê”, primeira revista em quadrinhos lançada por um único autor no país.

 



 

Já marcado no universo infantil, Ziraldo não perdeu a veia crítica e o hábito de tratar sobre o universo político. O Brasil vivia o ápice da repressão da Ditadura Militar quando o cartunista se uniu a outros intelectuais históricos para fundar “O Pasquim”. O decreto do Ato Institucional nº 5 (AI-5) emitido pelo pelo ditador Artur da Costa e Silva em dezembro de 1968 mergulhou o país na repressão, institucionalizou a tortura e retirou mandatos de políticos democraticamente eleitos. A resposta de figuras como Ziraldo, Claudius, Paulo Francis, Jaguar, Millôr Fernandes e Henfil veio meses depois com tinta e papel.

 

 

Sucesso nos movimentos de resistência à ditadura, O Pasquim também conquistou a inglória atenção dos censores do regime. A presença de militares na redação do semanário foi constante e resultava em invariáveis cortes de seu conteúdo que chegavam a limar dois terços das páginas. Além da censura, os integrantes da publicação colecionaram prisões. Ziraldo foi detido em três oportunidades.

 

“Ter tido O Pasquim na minha vida para atravessar os chamados anos de chumbo foi um privilégio. Foi uma experiência válida e inserida no contexto, foi mesmo. Não sei se a palavra é afetou, quando você se refere às formas de criação. Afetou não é pejorativo? Estou perguntando. Não seria melhor dizer influiu? Quando você diz afetar, já vem com um preconceito. Já está me dizendo que achou que o Pasquim me fez mal. Fez não. Era o que a vida podia me oferecer para que eu a seguisse construindo naquele momento”, diz Ziraldo sobre a experiência de publicar conteúdos críticos à ditadura em relato disponível no setor de memória d’O Pasquim na Biblioteca Nacional.

 

A perseguição nos anos 1960 e 1970 rendeu uma indenização milionária a Ziraldo. Ele foi considerado anistiado político em 2008 e conseguiu, junto de outros 20 jornalistas, direito a receber uma indenização no valor de R$ 1 milhão paga pelo Estado. Ao longo de sua vida, o cartunista nunca se eximiu de atuação política, tendo sido filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e depois ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).

 

O Pasquim foi publicado até 1991, já sem a colaboração de Ziraldo. O escritor conta que atravessou toda a ditadura no semanário, que era uma forma de resistência, mas não rendia dinheiro aos criadores. Com o arrefecimento do regime militar, o cartunista deixou a publicação e, foi só então, que ele criou sua obra mais famosa e comercialmente bem sucedida, o Menino Maluquinho, lançado em 1980.

 

 

Palavra

 

Já vivendo no Rio de Janeiro há quase quatro décadas, Ziraldo voltou para Minas Gerais (ao menos do ponto de vista editorial) no fim do século. Em 1999, ele forma uma equipe de jornalistas para lançar a “Palavra” em Belo Horizonte. Com o lema "uma revista que nasce em Minas Gerais com pretensão de ser uma publicação pela qual se interesse o Brasil inteiro", a publicação teve 16 edições.

 

José Eduardo Gonçalves participou de toda a história da revista, começando como redator da seção de perfis e chegando à direção da redação. Convidado por Ziraldo, o jornalista garante que o escritor é figura crucial em sua carreira, bem como a abordagem artística proposta por ele em "Palavra".

 

“Esse cara transformou a minha vida. Eu participei como um dos fundadores, era uma equipe de 11 pessoas que o Ziraldo convidou e eu fiquei do primeiro número ao 16°, que foi o último. Eu pude ver de perto a criatividade, a genialidade, a coragem, a irreverência e a responsabilidade cívica do Ziraldo. Um sonhador de um país melhor. Ele fez isso com a cultura, ele foi genial. Com 'Palavra' ele queria mostrar que a cultura sempre foi muito forte fora do eixo Rio-São Paulo e a gente não tinha uma publicação que refletisse isso.”, disse o jornalista.

 

Gonçalves destaca que, mesmo com a publicação encerrada, 'Palavra' faz parte do legado deixado por Ziraldo e segue relevante como material de estudo para futuras gerações de jornalistas.

 

“A gente realmente fez matérias extraordinárias passeando pelo Brasil e pelo mundo, com um trabalho que ajudou a revelar esse país desconhecido. Eu mesmo participei de algumas entrevistas antológicas, como a matéria que fizemos com o Ariano Suassuna, um especial que fizemos sobre a Revolução Cubana. Mas o mais incrível foi essa coragem dele de colocar no mercado uma publicação que olhava para esse Brasil quase invisível. Quando a revista terminou no ano 2000 eu já era outra pessoa. Eu acho que a revista até hoje tem um material que sobrevive, um material importante que deve ser conhecido, estudado” disse à reportagem.

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