Os recados da rua chegam de maneira sutil, fazendo eco em cada esquina: num poste, em vigas que sustentam placas e semáforos, ou em muros. São lambe-lambes com frases curtas carregadas de sentido, como “saudade é o carinho que dói”, “palavras que entalam no peito viram poesia leve” e “o meu caderno de leituras é a rua da cidade”. Esses pequenos haikais integram o projeto #umlambepordia, do escritor e produtor cultural Leonardo Beltrão.

 


Criada na virada de 2014 para 2015, a iniciativa tem como objetivo espalhar pela cidade cartazes com aforismos e fragmentos literários criados por Beltrão. Conforme o nome sugere, a cada dia ele cola um lambe-lambe inédito nas ruas. Em quase 10 anos, já espalhou cerca de 5 mil cartazes por BH, Varginha, Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador.

 



 

 


O projeto ganhou visibilidade sobretudo depois que personalidades do mundo político e artístico compartilharam fotos dos lambes em suas redes. Com o reconhecimento, o #umlambepordia ganhou até questão no Enem de 2020, na qual foi caracterizado como uma iniciativa que procura “trazer mais cor e alegria para a cidade”.

 


Parte desses textos está reunida no livro “Poemas de muro e amor”, cuja segunda edição será lançada neste sábado (20/4), no Espaço Cultural Mama/Cadela. Trata-se de um livro-objeto com os textos de Beltrão e design concebido por Bruno Nunes e Léo Rosário, no intuito de dar ao leitor um objeto único, personalizado.


Modo de usar

 

Cada exemplar de “Poemas de muro e amor” foi impresso em folhas de diferentes cores, formando um miolo multicolorido cujas páginas podem ser destacadas, transformando-se em lambe-lambes – há até uma página com “dicas para colar o seu lambe” no sugestivo capítulo “como utilizar este livro”.

 


“A gente não queria fazer um livro convencional”, diz Beltrão, referindo-se à equipe composta pelos colegas Nunes e Rosário. “Queríamos fazer algo que pudesse ser utilizado pelas pessoas. Por isso procuramos fazer uma montagem artesanal para que cada um pudesse usar o livro da maneira que achasse mais interessante.”

 

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Todo o processo de feitura do “Poemas de muro e amor” ocorreu na Tipografia Matias, uma das últimas em atividade na capital mineira, localizada no bairro Santa Efigênia. Em um verdadeiro processo de imersão, Beltrão, Nunes e Rosário praticamente moraram no local durante duas semanas. Nesse período, selecionaram os 119 poemas que integram o livro, planejaram e conceberam o projeto gráfico e imprimiram os exemplares.

 


Por não serem especialistas em tipografia, resolveram relevar e assumir erros na publicação, como letras impressas de cabeça para baixo e palavras riscadas por causa de erros ortográficos. “A gente resolveu assumir esses erros justamente para dar essa cara mais artesanal”, afirma o escritor.

 


Embora a funcionalidade do livro e seu projeto gráfico colorido despertem atenção, não ofuscam os poemas. Inspirado nas poesias curtas de Paulo Leminski (1944-1989) e em frases de Caio Fernando Abreu, Beltrão escreveu: “O amor elimina o medo do amor”, “O coração é o norte” e “Pensa no amor, tenta pegar / não tem o mesmo peso do ar?”.

 

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Um dos textos, inclusive, guarda semelhanças com um haikai do poeta curitibano. Impossível não reconhecer que “Existe hoje depois de tanto ontem?” ecoa “Haja hoje para tanto ontem”.

 


“Só depois que escrevi percebi que eles se parecem muito”, diz Beltrão. “É uma loucura, porque, realmente, parece demais. Mas acredito que isso aconteceu porque o Leminski é um dos caras que eu sempre tive como referência.”

 


“Poemas de muro e amor”, aliás, começa com uma citação de Leminski, afirmando que são poucos os que enxergam a rua como parte principal da cidade. No livro também há textos que conversam com versos ou frases de outros autores. Dessa vez, de maneira intencional.

 


É o caso de “Saudade o meu remédio é transar”, que distorce o verso “Saudade o meu remédio é cantar”, do baião “Que nem jiló”, de Luiz Gonzaga. Ou “Eles chamam de morro, nós chamamos de casa”, inspirada no projeto performático “They call it chaos, we call it home” (“Eles chamam isso de caos, nós chamamos isso de lar”, em tradução livre) descoberto por Beltrão em Istambul.

 


Em alguns casos, a forma se sobressai ao conteúdo em lambes que se aproximam muito dos versos de Pedro Xisto. São textos nos quais as letras têm tamanhos diferentes e as palavras são separadas de modo não convencional.

 


“Como esses poemas são impressos em lambes e colocados na rua, é preciso condensar o máximo possível. Dizer muito com pouco. Essa talvez seja a maior dificuldade. Mas é como diz o (Carlos) Drummond (de Andrade): ‘Escrever é cortar palavras’. E esse exercício é prazeroso, tanto que faço isso todos os dias há quase 10 anos”, afirma Beltrão.

 


Oficinas gratuitas

 

Leonardo Beltrão prepara uma série de oficinas gratuitas de lambe-lambe, que serão realizadas em centros culturais de BH. A primeira será na próxima sexta (26/4), no Centro Cultural Padre Eustáquio (14h30 às 18h30). A segunda ocorre em 11 de maio, no Centro Cultural Vila Fátima (13h às 17h).

 

A seguinte está marcada para 15 de maio, no Centro Cultural Venda Nova (14h às 18h). Em 15 de junho será a vez do Centro Cultural São Bernardo, a partir das 10h. As oficinas são abertas ao público, sem necessidade de inscrição prévia.

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