“Tempo bom, tempo ruim”, cantam mãe (Maeve Jinkings) e filha (Maya de Vicq) em uma das cenas mais pungentes do filme “Sem coração”. O refrão de “Iansã” (Caetano/Gil), na voz de Maria Bethânia no disco “Drama”, resume a jornada de descobertas, encontros e rupturas das duas protagonistas adolescentes do longa-metragem escrito e dirigido por Nara Normande e Tião, em cartaz em Belo Horizonte.

 




Filmado no litoral alagoano, em praia “onde coco mata mais que tubarão”, “Sem coração” é ambientado em vilarejo onde se avizinham casas de pescadores e de veraneio. O encantamento provocado pelas imagens, captadas pela diretora de fotografia russa Evgenia Alexandrova, vem da união da exuberância do cenário – água, areia e coqueiros a perder de vista – com o frescor das descobertas de um grupo de jovens nos anos 1990.

 

Sem (muitos) adultos por perto, eles preenchem manhãs, tardes e noites vazias com as explorações de residências e ruínas, embarcações e bicicletas, corpos de outros adolescentes e os próprios corpos, o fundo e a superfície do mar e, em outra sequência especialmente marcante, a aparição de uma baleia (impressionante trabalho da direção de arte).

 

 

A curiosidade, com um quê de irresponsabilidade, e o desejo predominam até que eles são confrontados com as consequências de decisões familiares e ações machistas e homofóbicas. Tempo de enlevo, tempo de violência. E, como não há celulares nem redes sociais, são os tempos de liberdade de uma juventude que sobrevive agora somente nas imagens de um cinema sensível e sensorial. “Sem coração” é, assim, um filme da época da inocência. E do início do fim da sensação de destemor que nos move antes de sermos tragados pela dureza concreta – e as tempestades – do dia a dia.

 


“Por meio de uma narrativa episódica bastante realista, mas não isenta de sonho e poesia, vem à tona em ‘Sem coração’ uma porção de temas morais e sociais candentes: machismo, homofobia, preconceitos de classe. Nada, contudo, é forçado. Não há uma intenção política ou moralizante que se imponha sobre a ação, muito pelo contrário”, analisa o crítico José Geraldo Couto, no Blog do Cinema, no site do Instituto Moreira Salles.

 

 


Com estreia mundial no Festival de Veneza do ano passado, “Sem coração” nasceu de curta homônimo de 2013 exibido em Cannes. “No processo de fazer o curta, Nara e Tião ficaram encantados com o grupo de meninos que conhecemos fazendo produção de elenco, com a própriaDuda (Eduarda Samara), que fez a Sem Coração, e começaram a pensar em desenvolver um longa para expandir esse universo.

 

"“A adolescência nos fascina porque ocupa o lugar de uma moral ainda não formada. Você ainda está descobrindo as suas vontades, o seu corpo, os seus medos”"
por Nara Normande, diretora

 

O roteiro foi se alimentando dessa experiência, do que vivemos lá, das histórias das pessoas que conhecemos, além da própria experiência pessoal de Nara, que cresceu nesse lugar do litoral de Alagoas”, conta uma das produtoras do filme, Emilie Lesclaux. Ela nasceu na França e criou em 2008, ao lado do marido, o cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, a produtora CinemaScópio, dos curtas e longas de Kleber (“O som ao redor”, “Aquarius”, “Bacurau”) e de outros realizadores.

 


“O filme é muito baseado nas minhas memórias antes de eu me mudar, aos 13 anos, de Guaxuma (bairro mais afastado de Maceió). Há experiências reais, coisas que vivi em contato com a praia e com esse bando de amigos de diversas classes sociais. É uma paisagem muito interessante e muito contrastante com os temas. Porque a gente observa uma paisagem linda, ao mesmo tempo em que existe toda a violência desse lugar pequeno. Alagoas é um dos estados mais homofóbicos do Brasil”, lembra Nara Normande.

 

“Queríamos construir um local impactante, que servisse bem à história. Buscamos uma beleza quase violenta, não um mero cartão postal”, complementa Tião (ele não usa sobrenome na assinatura de suas obras).

 

"Sem coração", filme inspirado na experiência da codiretora Nara Normande

Cinemascópio/divulgação

 

Entrevistas

 

Nara Normande, diretora

O ambiente e a época parecem tão importantes para o filme quanto os personagens e a própria trama. Por que essa história faz mais sentido no litoral nordestino e nos anos 1990?

Sobre a época, fazia sentido voltarmos para 1996. Primeiro, pelas nossas memórias afetivas. A gente conseguiu colocar um sentimento muito forte para as pessoas se identificarem. Independentemente da época, acredito que trouxemos questões muito universais sobre sexualidade e descobertas.

 

Então, para a gente tem sido bem interessante escutar os jovens de hoje em dia sobre como eles se identificam com o filme. Outro aspecto que elaboramos é o retrato de Alagoas como esse lugar de onde vêm figuras muito emblemáticas da nossa política, como Fernando Collor e PC Farias. Nessa época, era tudo muito escondido. Era como se pudéssemos ver as raízes e as sementes do que a gente vive hoje com essa polarização. Para a gente, era interessante trabalhar o Brasil de hoje a partir desse paralelo.

 

O Brasil não produz tantos filmes protagonizados por adolescentes, ainda mais de diferentes classes sociais. Por que os interessou contar uma história dessa faixa etária?

Eu acho que adolescência nos fascina porque ocupa esse lugar de uma moral ainda não formada. Você ainda está descobrindo as suas vontades, o seu corpo, os seus medos. É um período muito rico e era importante contar a história a partir desse ponto de vista. As crianças e adolescentes nos inspiraram muito, bem como a relação dos jovens com os pais, como isso tudo pode ser muito bonito e complexo.

 

O Tião também passava a infância indo para o interior do Piauí, em uma cidade pequenininha de 8 mil habitantes. Ele trouxe muito também da experiência de encontrar os primos, por exemplo. Nós, como diretores, não julgamos os atos mostrados no filme. Buscamos mostrar e entender as complexidades de cada coisa e de cada ação, mas sem colocar a nossa moral de adulto sobre as questões.

 

Tião, diretor

Como foi a preparação para as filmagens das cenas de intimidade entre os personagens adolescentes? Houve algum cuidado especial? E as cenas de violência?

Essas mais delicadas, seja de descoberta sexual ou de violência, a gente conversava muito com eles. Tentamos fazer um processo para que eles se divertissem nas cenas que eram mais de brincadeira, mas deixávamos claro que o filme tinha assuntos sérios.

 

A gente chamava o elenco para conversar nas cenas mais delicadas para enxergar todos os ângulos possíveis e abordar as situações de maneira cuidadosa. Sabíamos que alguns casos tinham inspirações reais, então era fundamental tratar desses assuntos em tela com empatia e preparar o elenco fazia parte do processo.

 

Como chegaram ao nome da russa Evgenia Alexandrova para a direção de fotografia? O que ela achou da luz do Nordeste?

A gente fez uma grande pesquisa assim sobre a fotografia e teve um bom diálogo com a Evgenia e sentiu que a gente podia fazer um bom trabalho juntos. A gente queria também alguém que viesse de fora e fosse uma pessoa sensível para ver como essa pessoa trabalharia a fotografia de uma realidade diferente da dela.

 

A Evgenia salientou a beleza natural forte do local. Eu acho que ela estava muito aberta ao processo do filme e se doou bastante. Foi muito companheira nas situações, pois gravamos em um sol muito forte, além de cenas dentro do mar. Teve um dia que a gente passou o dia todo em contato com a água e todo mundo terminou o dia muito enjoado e com muito frio. Ela topou todos os desafios e trouxe resultados muito eloquentes.

 

Emilie Lesclaux, produtora de cinema

 

Sua adolescência foi na França. O que mais a surpreendeu na reconstituição da vivência adolescente em uma praia nordestina nos anos 90? O que você não sabia e o que era semelhante em seu país?

É curioso, mas me identifico com muitos aspectos desse retrato da infância e adolescência. Cresci numa cidade do Sudoeste da França com muita liberdade, num ambiente próximo da natureza, com um bando de amigos e brincando muito fora, num período pré-celulares e redes sociais, sem muitos perigos ou noção de perigo.

 

Claro que não havia praia tropical, nem os problemas sociais e a violência que também são retratados no filme, mas mesmo sendo privilegiada, eu evoluí em ambientes socialmente e racialmente diversos, principalmente graças à escola pública.

 

O que foi mais difícil? Encalhar uma ‘baleia’ ou encontrar uma piscina vazia em frente ao mar? Quais outros desafios de produção?

A baleia foi provavelmente o principal desafio. Construir uma baleia de 13 metros com restrições de orçamento, num trabalho artesanal que virou uma verdadeira obra de arte, foi uma das coisas mais lindas que já presenciei. Foram muitas horas discutindo essa baleia, os materiais, os profissionais, o tamanho, o lugar para colocar a baleia, para transportar a baleia...

 

Virou uma grande atração nas praias onde estávamosfilmando. Até hoje as pessoas lembram da baleia como se tivesse sido uma baleia real.A piscina seria algo muito simples, pois queríamos filmar na mesma locação do curta, uma piscina abandonada perfeita em frente ao mar. Infelizmente, quando chegamos na locação, estava completamente coberta de areia.

 

Desenterrá-la era um processo muito complicado e não conseguimos as autorizações necessárias. Então partimos para procurar em todas as piscinas da região a proximidade do mar. A piscina que finalmente achamos é maravilhosa, mas ela não é em frente ao mar, tivemos que resolver isso com efeitos especiais e composição digital. A imagem é composta por duas imagens: o mar e a piscina.

 

Kleber Mendonça Filho, cineasta e produtor de cinema

 

O que foi fundamental para a decisão de produzir “Sem coração”?

A gente tem ajudado alguns realizadores, pessoas que a gente gosta e respeita, a fazer seus filmes, ajudar que esses filmes existam. “Sem coração” é um filme muito peculiar porque tem uma capacidade muito grande de expressar ideias, sobre crescer e ser jovem, mas num clima ímpar e pessoal. Consegue criar um canto no mundo, um casulo bonito no litoral de Alagoas.

 

Para mim, que cresci no litoral de Pernambuco, teve uma familiaridade. Você percebe que os realizadores claramente sabem do que estão falando. É talvez o que mais me chama a atenção. Espero que isso seja associável com os meus filmes, que são sobre coisas fortes em mim. O filme mostra um Nordeste que permanece homofóbico e preconceituoso, mas as ações e conflitos são brasileiros, universais.

 

O que o leva a dizer que “Sem coração” é um filme “totalmente bonito”?

Pela grande capacidade de expressar autenticamente ideias muito fortes do ponto de vista da experiência pessoal. E fazer isso de uma forma, ao mesmo tempo, clara e complexa. Às vezes existe uma confusão que, para se chegar à clareza, é preciso ser óbvio.

 

E isso não necessariamente está relacionado porque a vida é complexa e, muitas vezes, confusa. O filme tem também um sotaque muito peculiar. O cinema brasileiro precisa cada vez mais acessar as maneiras diferentes de falar: a gente lida há mais de 50 anos com uma televisão que pulveriza nosso jeito de falar. Cada vez que um filme como “Sem coração” é lançado, eu acho que a gente melhora do ponto de vista de percepção de nosso país. 

 

“Sem coração”
(Brasil-França-Itália, 2023, 92 min.)
Direção: Nara Normande e Tião. Com Maya de Vicq, Eduarda Samara, Alaylson Emanuel, Kaique Brito, Maeve Jinkings e Eron Cordeiro. Em cartaz no UNA Cine Belas Artes (Sala 3, 18h50).

 

compartilhe