A imensa repercussão de “Bebê Rena”, mesmo com um título nada chamativo, que deixa de soar ridículo e passa a ser apropriado apenas depois que a gente assiste aos sete episódios, lembra a máxima de Caetano Veloso: “De perto, ninguém é normal.” Richard Gadd, autor da série e um dos protagonistas, consegue ilustrar o verso de “Vaca profana” com rara eficiência e contundência ao mostrar as consequências dos descaminhos de uma mente perturbada. Uma, não; como descobrimos no episódio quatro, são duas mentes perturbadas. Ou, como especulamos após a sequência final do último episódio, podem ser três. Ou, se deixarmos a tela da Netflix e olharmos ao redor (e para o próprio umbigo), muito mais.

 


“A vida inteira eu queria muito ser o cara engraçado, o funny guy”, reconhece o escocês Gadd na narração em off (utilizada com precisão e fundamental para o acerto do tom da série) de seu alter-ego, Donny Dunn. Mas Gadd demorou a perceber que ele era a piada, como cantam os Bee Gees em “I started a joke” (de Roxy Music a Wilco, as canções escolhidas também ‘narram’ a história). A baixíssima autoestima de um sujeito que vive atrás da fama e associa a felicidade à queda livre é o elemento-chave para compreender a questão surgida no primeiro episódio: afinal, por que diabos ele permite o avanço de Martha Scott, stalker que o elege como objeto de desejo & afeto e dispara cantadas na linha “devia ser ilegal ter essa estrutura óssea”?

 




Intimidade explorada

 

A resposta vem mais à frente. “Me tornei uma isca grudenta para pessoas esquisitas, deixei uma ferida aberta para os outros farejarem”, reconhece o autor. A fala está no stand-up catártico que encerra o episódio cinco, com ecos de “O rei da comédia”, de Scorsese, e do “Coringa” de Todd Phillips. É o momento mais grandiloquente de uma série que não tem medo de misturar o cômico, o dramático e o patético no mesmo episódio, às vezes na mesma cena. Pelas tintas fortes autobiográficas, pode ser comparada a outra ótima minissérie, “I may destroy you”, de Michaela Coel.


Além da abordagem corajosa de temas atuais (saúde mental, stalking) e eternos (assimetria nas relações sociais, solidão), o sucesso de “Bebê Rena” vem da decisão de Gadd de não arrastar a trama em episódios de uma hora, como no padrão de séries dramáticas, mas condensá-la em fragmentos de, no máximo, 45 minutos. Assim praticamente não há tempos mortos nem tramas paralelas dispensáveis. Mesmo o recurso recorrente de inserir um longo flashback no meio da temporada aqui é plenamente justificado.


É no episódio quatro, com fatos ocorridos antes de Martha invadir a vida de Dunn, que somos apresentados a algumas das “partes mais profundas da minha insegurança”, como diz o comediante. “Você passou a vida inteira esperando alguém dizer: eu acredito em você como você acredita (em si mesmo)”, ele lembra ao revelar a exploração de sua intimidade. Convém reforçar o alerta: este episódio pode provocar gatilhos em muitos espectadores.


Elenco brilhante

 

Nenhuma das estratégias narrativas de “Bebê Rena” seria eficaz, contudo, se não houvesse o impecável trabalho do elenco, da solidez do desempenho dos coadjuvantes à excelência dos protagonistas. Se Gadd impressiona pelo desprendimento e altivez na autoexposição, a atriz inglesa Jessica Cunning brilha em todas as cenas como Martha Scott. Ela consegue transmitir a agressividade e perversidade esperadas, mas também perspicácia, graça e fragilidade.


Juntos, Gadd e Cunning constroem uma relação muito mais complexa do que a sinopse indica. “Bebê Rena” recusa o maniqueísmo da vilania feminina vista em filmes como “Atração fatal” ou “Misery: louca obsessão”. É uma história movida pelas ambiguidades e contradições da vida, não da ficção. Isso torna a série ainda mais perturbadora. E a experiência de vê-la, muitas vezes, aflitiva. Mas sempre fascinante.

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