O historiador André Rodrigues diz que Silvério dos Reis tinha o sonho de ser nobre e temia perder seu status de coronel de cavalaria -  (crédito: Maria do Carmo Bergamo / divulgação)

O historiador André Rodrigues diz que Silvério dos Reis tinha o sonho de ser nobre e temia perder seu status de coronel de cavalaria

crédito: Maria do Carmo Bergamo / divulgação

Figura cristalizada com o epíteto de traidor da Inconfidência, Joaquim Silvério dos Reis está para Tiradentes assim como Judas Iscariotes está para Jesus Cristo.

 

O historiador André Rodrigues entende que essa é uma das razões pelas quais as pessoas nunca quiseram estudar a fundo a trajetória do delator, para não diminuir o mito do principal nome da conjuração mineira, cuja figura foi, a partir da proclamação da República, deliberadamente ressignificada pelas autoridades nacionais para se tornar um herói protorepublicano.

 


Não por acaso, esse processo envolveu a construção de uma imagem semelhante à de Jesus, com direito a cabelos e barbas longos que ele nunca ostentou. À sombra de tal proeminência, sobrou para Silvério dos Reis o lugar de pária, que entregou Tiradentes às autoridades em troca do perdão de suas imensas dívidas com a Coroa portuguesa. Tal motivação é um dos pontos questionados na pesquisa que Rodrigues desenvolve para a Universidade Estadual Paulista (Unesp), onde leciona.

 


Com base em cartas e documentos privados que permaneciam inéditos no círculo acadêmico, preservados por descendentes de figuras históricas que orbitaram a Inconfidência, o historiador defende que Silvério dos Reis tinha dinheiro para pagar suas dívidas. Ele aponta que as razões que o levaram a entregar o movimento independentista estão mais ligadas ao risco da perda de status.

 

 

A reconstrução da trajetória do delator remete a um homem de extração social popular, que havia chegado ao Brasil jovem e pobre, e subido na vida devido ao próprio esforço. Neste sentido, segundo Rodrigues, Silvério dos Reis prezava sua patente de coronel de cavalaria e, naturalmente, não queria perdê-la, o que implicaria a queda da posição conquistada naquela sociedade. "Quando a gente começa a analisar Silvério, a partir de documentos a que outros pesquisadores não tiveram acesso, entra essa nova leitura", diz.

 

Arquivos e documentos


Ele conta que consultou versões manuscritas no Arquivo Nacional, acervos no Museu da Inconfidência e também em Lisboa, além de cartas guardadas por famílias que descendem dos inconfidentes. "Foram seis meses fotografando documentos e quase 10 anos debruçado sobre eles. Assim como o próprio Tiradentes, a documentação foi esquartejada, cada coisa está num lugar", diz.

 

"Todo mundo diz que Silvério traiu o movimento por causa de dinheiro, mas ele era um homem rico, tinha bens suficientes para quitar suas dívidas com a Coroa. Nessa fase de meu estudo biográfico, que, espero, gere um livro, vejo que ele traiu os inconfidentes porque foi contra a reforma militar pela qual iria se extinguir o regimento em que ele era coronel. Ser coronel naquela sociedade tinha um status, e o sonho dos homens ricos, naquele momento, era ser nobre. Ele tinha dinheiro, poder e influência política local, mas não era nobre", diz.

 

O pesquisador afirma ter se debruçado sobre registros públicos e acervos privados em sua pesquisa

O pesquisador afirma ter se debruçado sobre registros públicos e acervos privados em sua pesquisa

Reprodução


Documentação contábil


O historiador explica que se baseou, para chegar à leitura que sua pesquisa propõe, em vasta documentação contábil, sobretudo após a decretação da Derrama – a operação fiscal realizada pela Coroa Portuguesa para cobrar de forma compulsória os impostos atrasados. Ele destaca que esse estudo, inclusive, é anterior à imersão biográfica em Silvério dos Reis. O interesse de Rodrigues pela Inconfidência Mineira vem desde a graduação no curso de História, na USP, a partir de meados dos anos 1990.

 

Depois do mestrado, ele começou a estudar nomes ligados direta ou indiretamente à conjuração, grandes proprietários de terras no Sul de Minas, especialmente na região da Mantiqueira. No doutorado, o historiador começou a trabalhar com os inconfidentes da região do Rio das Mortes. "Estudando a trajetória desses homens do Sul de Minas, confirmei que, primeiro, os Autos da Devassa a que a historiografia se dedica correspondem a uma síntese, que diz respeito somente à parte do sequestro de bens", ressalta.

 

 

Ele conta que esse caminho acabou levando a Silvério dos Reis. "Quis saber quanto ele devia, quem eram as pessoas com quem se relacionava economicamente. São dados difíceis de serem trabalhados, então ainda estou às voltas com isso. Nessas relações, a gente tem a visão da historiografia, mas são dados que não batem com o que os documentos mostram. Após a decretação da Derrama, todo mundo ficou com medo, porque tudo o que você tivesse de valor seria confiscado. Esse foi o chamariz para o início da revolta", pontua.

 

Grandes fortunas


Trabalhar com as grandes fortunas dos personagens ligados à Inconfidência, homens envolvidos em muitas práticas comerciais, agrícolas ou minerais, implicou naturalmente Silvério dos Reis.

 

"É uma figura que tinha envolvimento com esses personagens", afirma, chamando a atenção para o fato de que o militar era o responsável pela cobrança do Registro de Entrada, um pedágio aplicado a quem passava pelos caminhos de Minas Gerais. Tratava-se, como diz, de uma sociedade em que todo mundo devia para todo mundo.

 

"Silvério dos Reis tinha essa posição importante e, de repente, ia perder tudo e voltar a ser um zé ninguém. Estou analisando o que os documentos me permitem. Ele quer manter o status, não está preocupado com dinheiro. É uma leitura que causa polêmica. Estou tentando recuperar quem era Silvério, ainda considerado o Judas brasileiro. Tiradentes só existe como herói porque houve uma traição, então é como se não se pudesse falar de Silvério dos Reis para não diminuir essa aura heroica", afirma.