A Nobel francesa de literatura começou a escrever o livro em 1986, logo após a morte da mãe; processo de escrita levou 10 meses -  (crédito: Alain Jocard - 5/2/2023/ AFP)

A Nobel francesa de literatura começou a escrever o livro em 1986, logo após a morte da mãe; processo de escrita levou 10 meses

crédito: Alain Jocard - 5/2/2023/ AFP


“Isto não é uma biografia, nem um romance, evidentemente, talvez alguma coisa entre a literatura, a sociologia e a história.” Na última página de “Uma mulher”, cuja edição brasileira acaba de ser lançada pela Fósforo, a Nobel de Literatura francesa Annie Ernaux ainda tateia para classificar sua obra.

 


A tarefa não é mesmo fácil.

 


Relato sobre sua relação com a mãe, cuja escrita teve início 13 dias depois da morte dela – ocorrida em 7 de abril de 1986 –, o livro tem características de um diário, assim como faz lembrar o subgênero “biografia impessoal” que a escritora desenvolveu e tornou sua marca registrada.

 

No entanto, “Uma mulher” é radicalmente pessoal. Não o é na descrição dos fatos, que Annie Ernaux mais uma vez narra sem ênfase, mas sim na abordagem das emoções que o luto traz à tona com uma violência irreprimível. “Na semana seguinte (à morte da mãe), passei a chorar em qualquer lugar”, conta a autora.

 

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Num vaivém temporal ditado pelo ritmo em que brotam as memórias, a escritora percorre as diversas fases de seu convívio com a mãe e a sequência de afastamentos e aproximações que marcou a relação das duas. Annie deixa a casa dos pais para estudar fora e depois se muda para ainda mais longe quando se casa.

 


A mãe volta a morar com a filha quando se torna viúva, desiste da experiência, passa a viver numa residência de longa permanência e, por fim, numa ala hospitalar destinada a pessoas com comprometimentos neurológicos – ela sofre de Alzheimer.

 

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A cada fase corresponde um conflito e não é aleatória a escolha que a autora fez da epígrafe, com uma citação de Hegel: “É um erro achar que a contradição seja inconcebível, pois é justo na dor dos seres vivos que ela encontra sua verdadeira existência”.

 


Contradição

A contradição fundamental que atravessa a experiência filial de Annie Ernaux está associada ao fato de ela ser uma “trânsfuga de classe”, conforme a expressão que os franceses usam para definir artistas que não nasceram em meios intelectuais e abastados.

 


“Você custa caro para nós”, diz a mãe para a jovem Annie, que não deixa de se ferir com o petardo, mas também não desconhece que essa mesma mulher se desdobra entre o trabalho com a casa e com o mercadinho de bairro que garante as receitas para que a filha possa frequentar museus e se instruir, enquanto ela trabalha.

 

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Ter um negócio, ainda que esquálido, representava para a mãe da escritora a ascensão social possível para uma mulher que sempre ambicionou um pouco mais de “dignidade” do que a cota reservada a pessoas que, como ela, tiveram de abandonar a escola para trabalhar como operárias. Na década de 20, um emprego em fábricas que a colocavam em contato direto e rotineiro com homens era, por si só, considerado desabonador.

 


O salto que Annie Ernaux faz, no entanto – de uma origem de trabalhadores rurais (como eram seus avós) e do pequeno comércio (os pais) para um sustento ganho por meio do trabalho intelectual e simbólico –, produz entre mãe e filha uma cisão que a escritora descreve em mais de um exemplo.

 


Annie se ressente do fato de a mãe ter modos rudes, mas percebe que, por outro lado, ela experimenta como uma espécie de dominação e violência a temporada na casa da filha cujos hábitos noturnos ao lado do marido eram “ler o ‘Le Monde’ e ouvir música clássica”. Por não se encaixar ali, a mãe decide partir e voltar a viver sozinha.

 


Memórias

Na tentativa de enxergar essa mulher por uma perspectiva “sociológica” e para além do papel de mãe, a escritora associa suas escolhas de vida e seu comportamento com uma luta contra a opressão e uma tentativa de se afirmar como sujeito autônomo.

 


É evidente, contudo, que Annie Ernaux procura cristalizar a imagem e as lembranças da mulher que conheceu e com quem conviveu. Quando uma tia faz uma inconfidência sobre a relação dos pais da escritora no início do namoro, ela comenta: “Agora que minha mãe morreu, não quero saber de mais nada a seu respeito que eu não soubesse enquanto ela estava viva”.

 

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“Uma mulher” foi escrito ao longo de 10 meses, período em que a autora observa aquilo que Machado definiu como “o tempo fazendo seu trabalho de coveiro”. Perto do fim da escrita, que ela não contou a ninguém que estava em curso, Annie Ernaux relê as primeiras páginas do livro e percebe que já havia esquecido alguns detalhes do dia da morte narrados ali.

 


A sombria perspectiva de se tornar igual à mãe no fim da vida não escapa aos pensamentos da autora. “Pensei também que um dia, nos anos 2000, eu serei uma dessas mulheres que esperam pelo jantar dobrando e desdobrando o guardanapo, aqui ou em outro lugar”.

 


Mas a imagem mais forte do livro ocorre a Annie Ernaux num sonho em que ela se vê “deitada no meio de um rio, entre duas águas”. O que ocorre em seguida demonstra o quão íntima e profundamente ela se vê ligada à mãe e como o ponto de contato entre as duas é o fato de viverem a experiência do mundo como mulheres. “Uma mulher” é a história de duas. Ou mais.

 


"UMA MULHER"
• Annie Ernaux
• Tradução: Marília Garcia
• Fósforo (64 págs.)
• R$ 64,90 e R$ 45,40 (e-book)