"Um dia você vai me agradecer", dizia a cineasta Suzana Amaral (1932-2020) a Marcélia Cartaxo, toda vez que a via pelos cantos, chorando. Quarenta anos atrás, a garota de Cajazeiras, interior da Paraíba, pensava um monte de coisas ao ouvir aquilo. Mas certamente o que se passava por sua cabeça não chegava nem perto de um agradecimento.
"Suzana era muito rigorosa. Quando me dirigiu, me botava de frente para a parede, de onde eu não podia sair de jeito nenhum. Não queria que eu perdesse a ingenuidade, fosse ao shopping, restaurante, me deslumbrasse. Me levou da cidade do interior e me deixou ali, do jeito que queria. Não era fácil, não. Mas até hoje eu agradeço", afirma Marcélia, aos 60 anos.
Marco não só da carreira da diretora e da atriz como da própria cinematografia brasileira, "A hora da estrela" (1985), retorna aos cinemas nesta quinta (16/5). O longa, que deu a Marcélia o Urso de Prata de Melhor Atriz no Festival de Berlim de 1986, foi restaurado e digitalizado e ganha relançamento pela Sessão Vitrine Petrobras.
Vencedor de outros prêmios importantes (levou seis troféus no Festival de Brasília e foi eleito o melhor filme do Festival de Havana) ainda foi o escolhido do Brasil para tentar uma vaga no Oscar.
PRIMEIRO FILME
É o primeiro filme tanto de Marcélia quanto de Suzana. Naquela altura, a diretora já havia passado dos 50 e tinha nove filhos. Mas tinha também uma carreira como documentarista, tendo trabalhado por quase 20 anos na TV Cultura. Conheceu Marcélia quando a viu no espetáculo "Beiço de estrada" (beiço, neste caso, quer dizer beira), que o grupo Terra, de Cajazeiras, apresentava em São Paulo.
A temporada terminou e a atriz e seu grupo voltaram para casa. Mas Suzana já tinha feito contato com ela. Depois de muita insistência da diretora – o que incluiu oito cartas enviadas durante oito meses de São Paulo a Cajazeiras – a atriz tomou um ônibus e embarcou para a metrópole. Naquela altura, havia lido o exemplar do livro de Clarice Lispector, de que nunca tinha ouvido falar, que Suzana lhe dera.
No romance, lançado em 1977, o narrador é um homem carioca de classe média, Rodrigo S.M., que conta a história da pobre nordestina Macabéa. Pois na versão cinematográfica o protagonismo está todo na personagem, nordestina semi-analfabeta de 19 anos, recém-chegada ao Rio de Janeiro, que namora Olímpico (José Dumont) e sonha em conseguir o estrelato avistado pela cartomante Madame Carlota (Fernanda Montenegro).
OUTRA CAMADA
"Revi o filme, está lindo. Faço sempre questão de ficar nas sessões para ver a reação das pessoas, como reagem ao personagem. Muita gente que lê o livro tem curiosidade", comenta Marcélia, que acredita que, se fosse rodado hoje, "A hora da estrela" teria "outra camada".
"Com esse movimento tecnológico, há muitas mulheres que estão sendo enganadas pela comunicação. As mentiras e a violência ainda existem, só que, na época do filme, era de outro tipo", afirma. A Marcélia dos anos 1980 tinha muito de Macabéa, diz hoje a atriz. "Com certeza, só fui amadurecer depois dos 30 anos. Perdi a virgindade com 22. Tudo era muito tarde, eu era muito criança."
São quase 40 anos desde a estreia de "A hora da estrela". A partir dele, Marcélia já fez mais de 30 produções, entre curtas e longas. Se o filme de Suzana foi o marco de sua juventude – "Ainda é o maior filme que fiz, todas as entrevistas que dou sempre terminam com 'A hora da estrela' – "Pacarrete" (2019), de Allan Deberton, se tornou um divisor de águas na maturidade da atriz.
Baseado em uma história real, o longa acompanha uma mulher idosa que teve um passado de glória na cidade grande e tenta revivê-lo, a despeito da incompreensão dos outros, no interior do Ceará. "Depois de 'Pacarrete', minha carreira vai de vento em popa. Os cineastas entenderam que eu faço tudo para o personagem acontecer, vou atrás, pesquiso", conta Marcélia.
Ela conversou com o Estado de Minas na última segunda (13/5), de João Pessoa, onde vive. Amanhã (17/5), vai para o Ceará, onde filma até 31 de maio "Gravidade", longa de estreia do diretor pernambucano Leo Tabosa. Já na sexta (24/5) volta à TV com uma participação na segunda temporada da série "Lama dos dias", do Canal Brasil.
E, quando agosto chegar, ela retorna para o set de "Cangaço novo", para a gravação da segunda temporada da série do Prime Video. Na produção, interpreta Zeza, a tia do trio de protagonistas Dinorah (Alice Carvalho), Ubaldo (Allan Souza Lima) e Dilvânia (Thainá Duarte). "A Zeza tem uma importância social, trabalha com a comunidade, arranja voto. Tô de boa com a personagem", comenta.
“A HORA DA ESTRELA”
(Brasil, 1985, 96min., de Suzana Amaral, com Marcélia Cartaxo, Tamara Taxman, Fernanda Montenegro, Umberto Magnani e José Dumont). O filme reestreia nesta quinta-feira (16/5), na Sala 3 do UNA Cine Belas Artes, com sessão às 18h40. Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia).