Cena de 'The Apprentice' -  (crédito: Divulgação)

Cena de 'The Apprentice'

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CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) - Pelo início de "The Apprentice", o espectador pode até achar que o retrato de Donald Trump feito por Ali Abbasi será simpático ao ex-presidente americano. Ele é jovem, carismático e está em busca de um sonho. Mas não demora muito para sua torre desmoronar.

 

Conforme a Trump Tower sobe, na trama centrada em seu trabalho como magnata do mercado imobiliário, sua moral e seu caráter fazem o caminho inverso, relegando o personagem ao papel de vilão.

 

 

"The Apprentice", ou o aprendiz, se concentra na ascensão de Trump entre os anos 1980 e 1990, de herdeiro de uma empresa familiar arcaica, afundada em problemas, a salvador de uma Nova York decadente.

 

 

Nascido no Irã, mas com passaporte dinamarquês, Abbasi não parece a pessoa mais adequada para dirigir uma biografia de Donald Trump. Não por suas origens, mas principalmente pela filmografia particular que já apresentou.

 

Abbasi é diretor de filmes como o esquisito "Border", uma história de amor entre criaturas do folclore nórdico, e "Holy Spider", um suspense sobre uma jornalista que busca um serial killer de mulheres no Irã.

 

Biografar um empresário e ex-presidente americano, com uma distância tão curta tanto de seu governo, quanto das eleições em que tentará voltar à Casa Branca, neste ano, soa arriscado.

 

Mas Abbasi é um diretor habilidoso, com controle total das histórias difíceis que conta. Aqui, não é diferente. O cineasta trata de forma frontal e incisiva diversas passagens espinhosas de Trump, e, talvez justamente por ser estrangeiro, não se deixa intimidar.

 

Talvez um americano não gravasse uma das cenas mais fortes do filme, que começa como piada e termina como crime, em poucos segundos.

 

Ivana, primeira mulher do americano, chega em casa com um presente -um livro sobre como encontrar o ponto G. Todos na sala de cinema riem. Ele, não. Tomado por mais desprezo pela mulher do que por raiva, ele a joga no chão e a estupra.

 

Ivana Trump, morta há dois anos, já havia falado sobre o caso, mas exibi-lo numa enorme tela de cinema é algo que outros cineastas talvez ficassem constrangidos de fazer.

 

É outra relação, porém, que importa ao filme. Trump e Roy Cohn, polêmico, influente e seu advogado por anos, é quem molda seu caminho para o sucesso. O ex-presidente é vivido por Sebastian Stan e Cohn, por Jeremy Strong, ambos em atuações controladas, que fogem do lugar-comum da caricatura.

 

Há entre eles, curiosamente, uma estranha energia sexual. Cohn, gay e morto por complicações da Aids, abocanha Trump com os olhos ao longo do filme. O chama de garoto bonito, passa a mão em sua coxa e se deixa flagrar numa orgia, plantando a semente de pavor para o preconceito do ex-presidente.

 

Stan, em especial, faz um belo trabalho físico, se transformando na figura excêntrica que conhecemos hoje aos poucos. Conforme o tempo passa e a conta bancária aumenta, seu Donald Trump vai ficando mais laranja e ganhando mais biquinho. Em contrapartida, crescem a egolatria e a vaidade.

 

O Trump do filme é um sociopata, e Abassi consegue fazer graça justamente a partir de seus momentos mais problemáticos e absurdos. Ele brinca com a falta de vontade de Trump de entrar para a política e com seu machismo notório, questionando, assim, a sanidade de uma nação que mais tarde iria elegê-lo.

 

Por mais que tenha chamado a atenção em Cannes, porém, "The Apprentice" ainda não tem distribuidor no mercado americano. Os direitos para o filme foram vendidos globalmente, mas nos Estados Unidos o rumor é que o ano de eleição vai afugentar o espectador das sessões de filmes políticos. Seria por isso que, em teoria, ninguém ainda o quer.