Dentre as figuras que habitam o imaginário em torno de Belo Horizonte, Maria do Arraial – por muitos ainda chamada pelo (pejorativo) apelido de Maria Papuda – é conhecida como a mulher negra que vivia na região do Palácio da Liberdade. Teria sido expulsa dali pela Comissão Construtora da nova capital. A lenda diz que, em represália, ela teria previsto a morte de alguns governantes, os futuros ocupantes da nova edificação.
Maria do Arraial é hoje nome de uma ocupação em um prédio na Região Central de BH (Rua da Bahia, 1.065). Também ganhou um curta, “O lado de fora fica aqui dentro”, de Larissa Barbosa, lançado em janeiro, na Mostra de Tiradentes. E a partir deste sábado (25/5) será uma das estrelas da exposição “Encruzilhadas da arte afro-brasileira”, que ficará em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, localizado na mesma região onde ela viveu, mais de 100 anos atrás.
Artista de Três Pontas radicado em São Paulo, Gustavo Nazareno reimaginou Maria como um orixá em “A coroação do Arraial” (2023), óleo sobre linho de grandes dimensões (2m X 2m) que ocupa um lugar de destaque na mostra. Foi um dos seis trabalhos comissionados para a exposição, que reúne 150 obras de 61 artistas (oito deles mineiros) de todas as regiões do Brasil.
“Se não a maior, é uma das maiores exposições em Belo Horizonte que reúne o trabalho de artistas negros. São 39 obras de mineiros. E a mostra chega com uma nova montagem e novos trabalhos”, comenta o curador, Deri Andrade, alagoano que viveu em São Paulo e está há dois anos e meio em BH. Ele é curador assistente em Inhotim.
Projeto Afro
Já exibida no CCBB de São Paulo e com chegada em novembro ao CCBB do Rio de Janeiro, “Encruzilhadas da arte afro-brasileira” nasceu a partir do Projeto Afro (projetoafro.com), plataforma criada por Andrade em 2016 para mapear e difundir artistas negros do país – atualmente são 330 nomes.
O cartão de visitas da mostra é o trabalho de outra mineira, Massuelen Cristina, de Sabará, em obra que foi realizada para a exposição em BH. Grandiosa e exposta no alto do pátio do CCBB, reúne imagens de grandes dimensões de mulheres, avó e tias da artista. Leva o nome de “Às margens do Velha”, no caso, o Rio das Velhas, que corta o centro histórico de Sabará. Nas laterais do pátio, Massuelen expõe “Saravá todos Exús”, com faixas verticais com desenhos dominados pelo vermelho.
No terceiro andar estão expostos quadros, esculturas, instalações e vídeos. O recorte proposto por Andrade foi a criação de cinco eixos, cada um deles em torno de um artista emblemático. São eles Arthur Timotheo? da Costa (1882-1922), Rubem Valentim (1922- 1991), Maria Auxiliadora (1935-1974, mineira de Campo Belo, mas com a vida passada em São Paulo), Mestre Didi (1917- 2013) e Lita Cerqueira (1952).
A maioria da mostra reúne artistas em atividade (55 deles), ou seja, o foco é grande na produção contemporânea. Mas há um recorte histórico, explica Andrade. Arthur Timótheo é o mais antigo da seleção. “Ele é uma referência hoje, mas não é muito conhecido. Ele estava junto com as movimentações da Semana de Arte Moderna de São Paulo, mas não é colocado entre os modernistas.”
A partir dos cinco nomes escolhidos, a exposição pretende jogar luz numa produção “diversa, plural e complexa”, diz Andrade. A primeira sala homenageia Emanoel Araújo (1940-2022), artista, curador e idealizador do Museu Afro Brasil (que dirigiu até a morte), no Parque do Ibirapuera, com a obra “Varando o espaço” (2017).
“Em 1988 ele fez a exposição ‘A mão afro-brasileira’ (no Museu de Arte Moderna de São Paulo) que reuniu, pela primeira vez, uma série de artistas negros que traziam uma discussão sobre o barroco, o modernismo, a arte contemporânea, a arte popular”, explica.
A partir de conceitos discutidos lá atrás, mas trazendo o debate para o mundo de hoje, foram criados os temas que agrupam os artistas da exposição. “Tornar-se”, sobre a importância do ateliê de artista (núcleo Arthur Timotheo?); “Linguagens”, que aborda os movimentos artísticos (Rubem Valentim, que terá novas obras na montagem belo-horizontina da mostra); “Cosmovisão”, a respeito do engajamento político e direitos (núcleo Maria Auxiliadora); “Orum”, sobre as relações espirituais entre o céu e a Terra, a partir do fluxo entre Brasil e África (núcleo Mestre Didi); e “Cotidianos”, que aborda as discussões sobre representatividade (núcleo Lita Cerqueira).
“Mas estes cinco eixos não resumem a qualidade, o volume e a complexidade que é a produção de artistas negros”, aponta Andrade. Todas as obras são acompanhadas por um QR Code que pode ser acessado pelo visitante. Entre as informações, consta o local de origem de cada artista . O público poderá explorar as ações já realizadas pelo Projeto Afro, que ganha uma sala na exposição.
Em São Paulo, “Encruzilhadas” teve cerca de 100 mil visitantes. No último fim de semana da mostra, o artista sergipano Davi Cavalcante apresentou a performance “Do que são feitos os muros”, que é literalmente a construção de muro de tijolos na exposição. Parte do muro virá para BH e, ao longo da mostra, Cavalcante chegará à cidade para dar continuidade à performance.
“ENCRUZILHADAS DA ARTE AFRO-BRASILEIRA”
Exposição no Centro Cultural Banco do Brasil, Praça da Liberdade, 450, Funcionários. Abertura neste sábado (25/5), às 10h. Visitação de quarta a segunda, das 10h às 22h, até 5 de agosto. Entrada franca (ingressos devem ser retirados no site ccbb.com.br/bh ou na bilheteria do CCBB-BH).