A sonoridade é conhecida, herdeira dos compositores brasileiros nacionalistas. Há toques de Villa-Lobos; certamente não é Guarnieri; poderia ser Mignone, mas há algo diferente: um alongamento nas frases, um tempo mais estendido, que não teme divagar. É o "Estudo brasileiro nº1", da compositora carioca Cacilda Borges Barbosa (1914-2010).
Uma espécie similar de estranhamento delicado, aliado a um domínio pleno do artesanato da escrita pianística aparece em "A nuvem e o lago", da paulistana Clarisse Leite (1917-2003).
As obras integram o instigante álbum duplo "Pianolatria", que acaba de ser lançado por Cristian Budu pelo selo Sesc. Aos 36 anos, Budu é um dos nomes centrais do piano brasileiro e destaque internacional desde a obtenção do Prêmio Clara Haskil, na Suíça, em 2013.
A escolha e a sequência das obras, autoras e autores, bem como as opções interpretativas (que envolvem a utilização de recursos de áudio como o overdubbing e versões com ampla liberdade sobre a partitura) é idiossincrática, e deita por terra quaisquer esforços acadêmicos de engessar o álbum em conceitos unívocos.
A despeito dos textos do encarte – ótimos em si mesmos – escritos pelo próprio Cristian, por José Miguel Wisnik e Camila Fresca (além de uma introdução de Claudia Toni, contando a história do projeto), o álbum parece recusar encaixes: sua escuta pede mais poesia do que pesquisa histórica, ou mesmo depoimento pessoal.
Recorte temporal
Uma compositora como Clarisse Leite, conhecida dos antigos professores de piano dos conservatórios paulistanos, talvez nunca tenha sido gravada com essa categoria. No amplo recorte temporal do trabalho, ela e Cacilda Barbosa são os únicos nomes cuja cronologia avança para o século 21. O intervalo entre o nascimento de Henrique Alves de Mesquita, o mais antigo, e a morte de Barbosa é de 180 anos.
Predominam compositores nascidos na década de 1890: Luciano Gallet, Nininha Veloso Guerra, Fructuoso Vianna, Amélia Nery (Tia Amélia), Francisco Mignone, Brasílio Itiberê II e Lorenzo Fernandez; Villa-Lobos é de um pouco antes; Guarnieri e Gnattali, de um pouco depois; Carlos Gomes, Chiquinha Gonzaga e Nazareth são mais antigos.
Realizar gravações de excelência de autoras e autores pouco ou nada conhecidos é um mérito inegável que em si justifica "Pianolatria". Mas justapor essas obras aos nomes centrais de Mignone, Lorenzo Fernandez, Guarnieri e Villa-Lobos também é importante, pois ajuda a redesenhar afetos e ideias estabelecidos.
Pianista-pensador
Essa postura aproxima o trabalho de Budu mais ao de um pianista-pensador como Arnaldo Cohen – aqui na referência direta ao magistral álbum "Brasiliana: Three centuries of Brazilian music" (2001) – do que ao de Nelson Freire (1944-2021), com quem tem sido às vezes comparado.
Em "Impressões seresteiras" (de Villa-Lobos), Budu transita do impressionismo à seresta com baixos robustos, equalização impecável e sentido fraseológico que nunca se perde nas extensões sonhadoras da melodia.
Sua leitura do scriabiniano penúltimo (nº 49) "Ponteio" de Guarnieri é referencial – amplifica a qualidade magna da composição, que a cada escuta parece revelar novas forças. O perigo é que interpretações como essas assim possam se perder em meio a tantas e variadas faixas.
Embora em versões interessantes, são os "clássicos populares" as menos relevantes dentre as 40 faixas, como o "Corta-jaca", de Chiquinha Gonzaga, e os arranjos para "Batuque", de Lorenzo Fernandez, e para "Apanhei-te cavaquinho" – obras em que superabundam versões de todos os tipos por músicos clássicos e populares.
Um século atrás, Mário de Andrade chamou de "pianolatria" – idolatria ao piano – a supervalorização do piano no meio musical paulista. O álbum de Budu busca também, de algum modo, ressignificar o termo e, talvez, para além, o próprio Mário.
Mas é a justaposição de Leite e Barbosa com Guarnieri e Villa, ou em miniaturas como "Homenagem a Sinhô" (de Fructuoso Vianna), e "Porque" (de Radamés Gnattali) que estão as pistas que tornam "Pianolatria" ainda mais inventivo do que ele mesmo busca ser. (Sidney Molina)
Vida em Minas
Paulista filho de romenos, Cristian Budu se radicou em Belo Horizonte durante a pandemia. Em entrevista concedida no ano passado ao Estado de Minas, o artista explicou as razões de sua escolha pela capital mineira: “Sempre tive uma ligação forte com Minas Gerais. Planejava:
‘Um dia vou morar em Minas’. Também sempre tive afeição grande pela música e grupos musicais. A Orquestra Ouro Preto é muito querida, já toquei 10 vezes com eles, com a Filarmônica toquei bastante. Minha companheira (Ayla) é mineira, minha filha (Laura) nasceu em Minas. É um lugar que tem um lado profundo, muito diferente de São Paulo e do Rio. Belo Horizonte é um grande centro, mas aqui me sinto mais conectado com a terra, perto da natureza. E as relações com as pessoas: há tempo para que as coisas que importam aconteçam. Não sei como explicar, mas aqui se valorizam as coisas grandes e pequenas da vida. Encontrei amantes da música em saraus, grupos musicais viraram laços muito importantes. Em São Paulo, a vida corre muito rápido. Em Minas, consigo perceber melhor o tempo”. (Redação)
“PIANOLATRIA”
• Cristian Budu
• Selo Sesc
• Disponível nas plataformas digitais