Luisa ama Ravel, mas também gosta de Johnny, que vai para a cama com os dois – em separado. E está tudo bem para cada um dos envolvidos. É um trisal jovem, carioca, artista, cheio de ideias que protagoniza "Transe", filme de Carolina Jabor e Anne Pinheiro Guimarães que estreia nesta quinta (2/5), no UNA Cine Belas Artes.

 




Este idílio é assombrado por uma ameaça que acaba se concretizando, deixando impávido o trio de protagonistas. "Transe" foi rodado no Rio de Janeiro, no segundo semestre de 2018, durante o período eleitoral que culminou com a eleição de Jair Bolsonaro à presidência.


O primeiro dia de filmagens foi 29 de setembro, que ficou marcado pelas manifestações #EleNão, lideradas por mulheres, em todo o país. No Rio, a concentração foi na Região Central, da Cinelândia até a Praça XV. Carolina e Anne Pinheiro filmaram a manifestação. Não sabiam, naquele momento, qual seria o fim das imagens.


Em poucas semanas, com um orçamento irrisório (o filme custou aproximadamente R$ 200 mil, vindos de investimento privado; sem utilização de verba pública via renúncia fiscal) e contando com a colaboração de várias pessoas do cenário artístico carioca, o longa foi rodado. Finalizado somente em 2022, quando foi lançado na Mostra de São Paulo e no Festival do Rio, "Transe" chega agora ao circuito comercial, quase seis anos após sua urgente gestação.

 


"Lançá-lo hoje traz uma nova camada, um novo olhar. Quando o mostramos pela primeira vez (nos dois festivais supracitados), no período da campanha (presidencial de 2022), houve outra percepção do filme, pois havíamos passado pelos quatro anos de Jair Bolsonaro”, afirma Carolina Jabor.


“Hoje estamos mais aliviados, mas também com a clareza de que não derrotamos ninguém, de que temos que ficar muito atentos. Acho que o filme trata disso: um documento histórico que hoje se faz muito atual. Não podemos descansar, foi o aprendizado que tivemos", prossegue.


Espírito livre

 

O filme acompanha a atriz Luisa (Luisa Arraes), que vive em uma apartamento na Lapa com o músico Ravel (Ravel Andrade). Depois da manifestação do #EleNão, ela vai a uma festa surrealista (que realmente aconteceu naquele dia) e lá conhece Johnny (Johnny Massaro), que pode ser descrito apenas como um espírito livre, já que não se sabe exatamente o que ele faz. Johnny fala de física quântica, adora a natureza, e logo se aboleta no apartamento do casal. São personagens que vivem na bolha – e todos têm consciência disto.


"Eles são jovens, artistas e, portanto, não ativistas, que não querem o mal de ninguém, mas o amor livre, o sexo, a festa. Mas são conscientes da beleza do mundo. Não são pessoas com responsabilidades grandes. Vivem da forma apropriada para aquela idade", afirma Anne.


A trajetória dos personagens é apresentada em sequências marcadas por discursos e falas de Bolsonaro. Não há imagem do agora ex-presidente, mas o áudio (e a data e local onde ocorreu) aparecem na tela preta. A que dá início ao filme foi registrada em discurso de fevereiro de 2017, em Campina Grande, Paraíba.

 


"Vamos fazer o Brasil para as maiorias. As minorias têm que se curvar às maiorias. As leis devem existir para defender as maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem. Deus acima de tudo."


A fase final da campanha que elegeu Bolsonaro é acompanhado de perto pelo trio. Em especial por Luisa, que se envolve profundamente com as eleições. Figuras da cena carioca aparecem como eles mesmos, falando com personagens progressistas – como o pastor Henrique Vieira, hoje deputado federal pelo PSOL, e Cláudio Prado, produtor cultural e teórico da contracultura.


Encontros com amigos, conversas de bar, não há outro tema para os jovens, de uma ingenuidade impressionante, ainda mais aos olhos de hoje. "Não só a juventude se surpreendeu com a força (com que Bolsonaro) chegou. A ingenuidade traduz muito bem nossa perplexidade na época", afirma Anne, logo completando: "O filme cristaliza falas do Bolsonaro. Acho importante rever (agora), pois quando você ouve e vê escrito, vê os absurdos".


Escuta redobrada

 

As filmagens foram realizadas de acordo com os fatos da política. "A gente criava os assuntos e as situações, mas não escrevíamos os diálogos (para os atores). Ser ator é um trabalho de escuta. Ali, esta escuta era redobrada, já que eles não sabiam o que iria sair da boca do outro. Tínhamos ideias, os atores sugeriam, e a gente via como conseguiria abordar as nossas preocupações", afirma Anne.


Em dado momento, Luisa se encontra com um amigo de infância, negro, morador de comunidade, prestes a ter o primeiro filho. Sem titubear, ele afirma que voltará em Bolsonaro e deixa claras as suas razões. A bolha em que ela vive com os amigos não aceita o jovem – e há um climão quando Luisa o leva para conversar no apartamento.


Entre o documental e o ficcional, "Transe" mostra os personagens se questionando (e aos outros) o tempo inteiro. Isto, de certa maneira, reflete também o processo de produção do longa. "A gente não sabia que filme ia ter, pois não só os personagens, mas os próprios atores queriam entender o que estava acontecendo", diz Anne.


“TRANSE”
(Brasil, 2022, 77min.). Direção: Carolina Jabor e Anne Pinheiro Guimarães. Com Luisa Arraes, Johnny Massaro e Ravel Andrade. Estreia nesta quinta (2/5),no UNA Cine Belas Artes (Sala 3, 19h).

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