Rio de Janeiro, carnaval de 2019. Uma tempestade domina a Marquês de Sapucaí. A apreensão na Acadêmicos de Santa Cruz, quarta escola da primeira noite dos desfiles da série A, é grande. Como a homenageada, tema do samba enredo "Ruth de Souza – Senhora Liberdade abre as asas sobre nós", aos 97 anos, iria desfilar?

 




Além da chuva, Ruth (1921-2019) sempre teve medo de altura. Até que alguém pergunta se ela realmente quer subir (a bordo de sua cadeira de rodas) no carro alegórico. A resposta, em tom de pergunta, é categórica: "Por que eu ainda não estou em cima do carro?".

 


Com estreia nesta quinta (9/5), no UNA Cine Belas Artes, o documentário "Diálogos com Ruth de Souza" só existe por uma falha de sua diretora, Juliana Vicente.

 


Atrizes de seu primeiro curta, "Cores e botas" (2010), Jhenyfer Lauren e Dani Ornellas eram próximas a Ruth. Certo dia, Dani perguntou a Juliana o que ela sabia sobre a atriz. A realizadora, hoje com 39 anos, não conhecia muito. Dani começou a revelar o universo de Ruth. "O próprio impacto do absurdo de eu não saber quem era ela, uma pessoa que abriu caminho para eu fazer o que faço, já era bastante suficiente para que eu fizesse algo", afirma.

 


Em 2009, Juliana, então na casa dos 20 anos, foi conhecer Ruth, na época com 88. Chegou à casa dela já com a câmera em punho. Ao longo de uma década, perdeu a conta do número de encontros que teve com a atriz. O filme mostra o envolvimento da cineasta com sua personagem.

 

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"No primeiro momento, foi muito difícil, pois ela tinha um discurso muito controlado do que queria ou não falar. Eu tinha três ou quatro entrevistas iguais, afinal, foram muitos anos contando a própria história. Para mim, virou um desafio ir além da história que estava cristalizada. À medida em que consegui arquivos, coisas que ela não via há muito tempo ou nunca tinha visto, tivemos outras possibilidades de diálogo", diz Juliana, também diretora de "Racionais: Das ruas de São Paulo pro mundo" (2022, disponível na Netflix).

 


Dramatização

O filme intercala os vários depoimentos que Ruth deu a Juliana em sua casa, com imagens de arquivo tanto das produções de que ela participou quanto de entrevistas de outras épocas. A narrativa ainda traz uma dramatização, fazendo um cruzamento com o universo mitológico africano. Nestas sequências, Ruth é interpretada por Dani Ornellas na fase adulta e Jhenyfer Lauren na juventude.

 


Alguns destaques da longa trajetória de Ruth: foi a primeira atriz negra a atuar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro – estreou, em 1945, o espetáculo "O imperador Jones", de Eugene O'Neill. Foi contratada por mais de meio século da TV Globo, onde atuou em mais de 30 novelas.

 


Sua carreira tem início no começo da década de 1940, no Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado em 1944 por Abdias do Nascimento. Permaneceria alguns anos ali, porque ainda naquela década entrou para o cinema. Sua estreia foi em 1948, por indicação de Jorge Amado, em "Terra violenta", adaptação da obra do escritor baiano.

 

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Começou os anos 1950 com uma temporada nos Estados Unidos. Por meio de uma bolsa de estudos da Rockefeller Foundation, estudou teatro e cinema durante um ano naquele país (Juliana conseguiu farta documentação de sua passagem pelos EUA). No retorno, tornou-se uma das primeiras atrizes da Vera Cruz.

 


Reconhecimento

O reconhecimento veio tanto no Brasil quanto fora. Com o filme "Sinhá moça" (1953), foi indicada ao prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza, mesmo fazendo um papel de coadjuvante. Perdeu por dois votos para Lilli Palmer – e Katharine Hepburn estava no páreo. No mesmo período, com a chegada da TV ao Brasil, Ruth passou a fazer parte do elenco da Tupi, onde era frequente nos teleteatros.

 


Toda essa trajetória está no documentário. Ruth comenta cada passagem com bom humor, inteligência e uma dose de nostalgia. Não poupa críticas a Abdias – "Era um gênio, mas fez muita burrice". O ator, professor, político e ativista negro foi contrário a decisão dela de trabalhar para a Atlântida e a Vera Cruz, pois atuaria com brancos.

 

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Ruth só queria ser atriz, ela afirma mais de uma vez. E soube lidar com as armas que tinha contra o preconceito racial. Conta, por exemplo, que quando saía com os colegas de cinema, era a única pessoa negra no grupo. Um dia, alguém lhe disse que quem visse a cena de fora pensaria que ela era empregada. Ruth então resolveu fumar: "Nenhuma empregada fuma na frente do patrão". São várias as fotos dela empunhando um cigarro na noite carioca.

 


Em dado momento, diz que nunca se casou porque os dois pretendentes sérios que teve queriam que largasse a profissão. Juliana admite no próprio filme que não conseguiu, apesar de todo o envolvimento, falar de emoção com ela. "Acho que isto é dela mas também muito próprio da mulher negra. Só depois que ela faleceu fiquei sabendo de coisas da vida afetiva que ela nunca tinha me revelado."

 


Ruth viveu alguns meses depois do desfile na Sapucaí. Morreu em 28 de julho de 2019, aos 98 anos, em decorrência de complicações de uma pneumonia. Juliana foi com ela até o final. "Quando ela foi para o hospital, montei um teaser do filme para ela ver. E ainda colocamos 'em breve, nos cinemas'. Ela ficou toda feliz. Ela tinha tanta vitalidade que achávamos que não iria morrer nunca", comenta a diretora.


“DIÁLOGOS COM RUTH DE SOUZA”
(Brasil, 2022, 107min.) Direção: Juliana Vicente. Documentário sobre Ruth de Souza. Estreia nesta quinta-feira (9/5), no UNA Cine Belas Artes (Sala 1, às 16h20).

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